domingo, 25 de novembro de 2018

ALÉM DOS RÓTULOS E ATRAVÉS DA RÓTULA – UMA BRINCADEIRA DOMINICAL COM AS URUPEMBAS E A HISTÓRIA.



Devendo huma vez acabar com o antigo e impolitico uso das urupembas nas portas, e janelas nas ruas ainda as principais desta Cidade, o que só podia admitido nos principios rusticos da primeira fundação... serem tiradas as ditas urupembas, e substituirem com algum outro reparo que quizerem como gelozias ou vidraças... 
Deus guarde a Vossas Senhorias por muitos annos. Palacio do Governo da Parahyba. 26 de Outubro de 1825  


Recentemente tivemos a ventura de topar com uns documentos tidos por perdidos da Câmara de Vereadores da antiga cidade da Parahyba. Trata-se de um esparso conjunto de papeis que englobava de maneira incompleta e descontínua os anos de 1814-15, 1824-28 e 1910-12. Sobraram do muito que se perdeu em muitas décadas pelos motivos mais diversos. Não se trata de um enorme volume, mas acaba se transformando num acervo bastante significativo, dada a possibilidade que permite ver aspectos escassamente conhecidos ou praticamente desconhecidos da vida urbana nesses momentos. Os pesquisadores encontrarão muito do que se fartar nos próximos tempos.
A diversidade de assuntos é muito rica e damos aqui uma ideia geral do que se encontra nesses velhos papeis: regulamentação ou proibição de currais de pescaria por atrapalharem a navegação do rio; briga com o Vice Presidente da Província pela nomeação do Médico da Cidade logo após à derrota da Confederação do Equador; falta de Professores de Primeiras Letras; problemas de recuperação de estradas e pontes em Mandacaru e Gramame, com decorrentes dificuldades para o abastecimento de farinha para a Tropa Paga e para o Mercado Público devido à importância estratégica da Ponte de Gramame; notícias diversas da Corte Imperial, como nascimento do Príncipe Herdeiro, aniversário do Imperador, falecimento da Imperatriz entre outras; atos de política internacional como notificação e júbilo pelo reconhecimento da Independência do Império do Brazil pelo Reino de Portugal, Tratados Internacionais de Amizade, Navegação e Comércio entre o Império do Brazil e os Reinos da Prússia, a Liga Hanseática e o Império da Áustria; ação de ladrões em Gramame; Festejos da Padroeira Nossa Senhora das Neves; briga entre um Padre e umas "molheres apelidadas as Venancias" (quem seriam essas Senhoras? Daria um ótimo nome para uma banda de Rock local) por acesso à água numa cacimba no lugar das Convertidas (atual Maciel Pinheiro); providências para conserto de fontes e bicas de água. Resumindo: há uma pletora de fragmentos da vida urbana da velha Parahyba que serve como uma pequena cápsula do tempo dos tempos d’antanho.
Um dos documentos mais curiosos que encontramos, e que causou certo espanto de quem o viu, é de uma Vereação de 26 de Outubro de 1825, no qual o Presidente da Província Alexandre Francisco de Seixas Machado fala do uso das urupembas nas portas e janelas das casas da Cidade e determina sua remoção em breve tempo. O que seriam as tais urupembas e por que que as mesmas eram vistas, no começo do século XIX, como algo impolítico, ou seja, marca de atraso e de costumes rústicos que deveriam ser combatidos?
As urupembas seriam uma espécie de treliças colocadas nas janelas e portas, que teriam finalidade de sombrear o ambiente interno mantendo a sua ventilação, bem como isolando o espaço interno das casas do olhar indiscreto das ruas. Supostamente, seria possível ver o que se passava nas ruas, sem ser visto. Isso permitiria o recato necessário às mulheres naquela sociedade distante de nós quase dois séculos, mas cujo uso já era considerado impolítico por um Presidente de Província. Como entender essa situação aparentemente banal?
Bom, não se tratava apenas de uma questão estética como pura forma, mas de como uma determinada forma de sociabilidade se manifestava através de uma simples estrutura de janela das casas. O "ver sem ser visto" poderia ser fonte de mexericos (hoje modernizados com o nome brega de fake news). Por outro lado, o historiador Paulo César Garcez Marins, no seu interessantíssimo livro "Através da Rótula: Sociedade e Arquitetura Urbana no Brasil, séculos XVII a XX", mostra que as treliças de madeira que pareciam isolar o interior das casas do ambiente externo, também eram brechas de passagem para atos não tão adequados para a moralidade da época. Inclusive, acrescentamos aqui que o nome gelosia aplicado a algumas dessas janelas, vem da palavra italiana gelosia, que advém de uma palavra árabe de mesmo significado, que em português é ciúme. A gelosia seria a garantia de maridos ciumentos. Seria?


Curiosamente, a mesma palavra gelosia é usada no francês jaloux e no inglês jealous. Está numa magnífica música de John Lennon, "Jealous Guy" (em nordestinês paraibano algo como "caba ciumento").
E a palavra urupemba ou urupema? De onde viria esse nome? Bom, é tupi e significa uma peneira feita de talas de madeira para peneirar mandioca. Como lembra uma treliça, temos o termo urupemba usado para essas treliças que ficavam nas janelas e que a autoridade da velha Parahyba viu como impolíticas.
Do reduzido espaço de uma janela pudemos nesse jogo lúdico juntar os antigos moradores da Parahyba, a arquitetura mediterrânea e árabe, a palavra ciúme em italiano, francês e inglês, o grande caba ciumento John Lennon e uma estrutura treliçada que ganhou um nome tupi devido a uma peneira de farinha.
Tá misturado aqui arquitetura, economia, moralidade pública e privada, música pop, a velha Parahyba e por aí vai. Sem besteira de "rótulos" de “nova história de sei-lá-o-que”, “sei-lá-mais-que", talvez chamar de História já seja mais que suficiente, pois, como diria o velho Marc Bloch “é o tudo pronto que espalha gelo e tédio”. Através das rótulas das Histórias e sem se ficar mesmerizados nos rótulos, muita coisa passa ou pode passar de um lado para o outro, sejam as práticas licenciosas esperadas das recatadas domésticas, sejam algumas coisas intragáveis apresentadas como a mais pura ciência.