sexta-feira, 9 de junho de 2023

 

Rumo à praia, mas, no rumo certo?

 

Ângelo Emílio da Silva Pessoa (DH-UFPB)


Nota: Esse breve artigo foi motivado por um processo que está em andamento na cidade de João Pessoa, de alargamento das praias. Diversos estudiosos das áreas da Geografia, do Urbanismo, da Geologia, da Biologia, do Direito Ambiental, da Sociologia e outras têm alertado de maneira fundamentada e preocupada em relação às consequências danosas do ponto de vista socioambiental que daí podem advir e há uma mobilização popular no sentido de frear os interesses da grande construção civil e da especulação imobiliária, insensíveis a essas consequências e focados apenas no lucro imediatista. Essa é uma pequena contribuição a essa discussão.

      

                Pode parecer surpreendente, mas o hábito de priorizar as praias como lugares de moradia salubres e com qualidade de vida não é tão antigo quanto possa parecer. Num instigante trabalho sobre a praia no imaginário ocidental, o historiador Alain Corbin aponta que até meados do século XVIII predominava sobre a beira-mar uma percepção de lugar insalubre, nocivo, cheio de perigos, de malefícios, de decomposição, de assombrações. No final desse mesmo século, inicialmente na Europa, mas se expandindo no ocidente, essa visão sobre a praia começou a se modificar e novas sensibilidades começaram a emergir nesse sentido, atribuindo aos ares marinhos uma ideia de saúde, de renovação (CORBIN, 1989).


Praia de Tambaú em torno de 1926. A região ainda era lugar de moradia de pescadores, com umas poucas residências de veranistas. Viver frente ao mar ainda não era hábito de nossa população. Autor desconhecido.

                Isso não implica que não houvesse populações residentes às beiras de praias, rios e lagos, essas populações litorâneas e ribeirinhas se constituíam durante séculos nos segmentos sociais mais empobrecidos, vistos das maneiras mais desabonadoras pelos detentores do poder e pelos segmentos mais abastados. No caso do Brasil, um historiador assim afirma:

Durante toda a existência desses grupos socialmente distintos, principalmente a partir da formação do estado nacional no século XIX, o senso comum formulou alguns estereótipos um tanto quanto evasivos, atribuindo-lhes qualificações depreciativas a respeito das suas formas de sobrevivência [...]. Ancorados no discurso virtualmente disciplinador e pautados nas regras existenciais de universos diferentes, criaram imagens de sujeitos, trabalhadores – homens e mulheres – sem nenhum tipo de ambição, irremediavelmente condicionados a um estilo de vida “desregrado”, refratário à labuta diária, que priorizam bebedeiras nos bares, a disputa nos jogos de azar ou que passam a maior parte do tempo espreguiçados nas redes de balanço, sob a sombra dos coqueirais, historicamente contaminados pelos ventos da “maresia”; ou melhor, da letargia. (CASTELLUCCI JR. 2016. p. 31/32).

                Essa visão é corroborada por um destacado geógrafo:

Observa-se na zona costeira do Brasil, no fim do período colonial, a existência de cidades portuárias relativamente isoladas que se constituem em centros de uma produção local ou em pontos terminais de sistemas produtivos específicos do interior. [...] De resto, vastas extensões do litoral permanecem isoladas ou pouco ocupadas. Estas serão tradicionalmente áreas de refúgio de tribos indígenas e de escravos fugidos, que acabam por instalar pequenas comunidades envoltas em gêneros de vida rudimentares, voltados para o autoconsumo. Estas vão ser as origens das populações litorâneas “tradicionais” ainda hoje presentes em várias porções da costa brasileira (MORAES. 1999, p. 34). 

 

Dessa forma, tratados como párias, como indolentes, essas populações que viviam do seu pescado, da mariscagem e de todas as formas de labuta vistas como degradantes, estavam longe de ser reconhecidos como sujeitos de seus próprios destinos, especialmente numa ordem escravista, sendo sobre os mesmos estabelecidos estigmas os mais diversos, a suspeição constante e os “projetos de civilização” que os queriam reduzir à condição de mão-de-obra barata e disciplinada. Num Ensaio Econômico em 1816, o então dublê de Bispo e Economista de Olinda assim propunha o disciplinamento das populações indígenas e parte das africanas:

§ XII – O índio selvagem entre a raça dos homens parece anfíbio, parece feito para as águas (...): é naturalmente inclinado à pesca, por necessidade e por gôsto. Esta é a sua paixão dominante e, por conseqüência, a mola real do seu movimento: é por esta parte que se deve fazer trabalhar a sua máquina, em benefício comum dêle e de tôda a sociedade.(...)

§ XIV – Êste arrebatamento de gosto o irá insensìvelmente atraindo e convidando a viver e comunicar-se com os homens daquela profissão [fabricante de redes de pesca], que para êle se representa extraordinária. Esta comunicação lhe fará ver a diferença do homem selvagem e a do civilizado; pouco a pouco se irá domesticando, e conhecendo que o homem é capaz de mais e mais comodidades. (...).

§ XXII – Os prêtos, aquêles braços feitos mais para um trabalho contínuo nos meios dos ardores do Sol do que para os frios das águas, e que até agora serviam na marinhagem como perdidos para a lavoura, irão aumentar os produtos da agricultura (...).

§ XXII – A agricultura, a pescaria, a marinha, dando as mãos entre si, elevarão Portugal a uma fôrça e a uma riqueza imensas. A pescaria e a marinha, ainda que nenhum lucro dessem a Portugal, se deveriam, contudo, promover por todos os meios possíveis, só porque são o meio de aproveitar tantos milhares de braços, que, aliás, são perdidos. (COUTINHO, 1966. p. 92-100).     

                Assim, vistos por um prisma constantemente desabonador, não custou que essas populações tivessem sido, via de regra, desconsideradas em relação às suas expectativas e pontos de vista quando dos grandes processos e planos de expansão urbana para áreas litorâneas, no momento em que as cidades brasileiras começaram a migrar para as praias. Desalojadas de seus espaços tradicionais, restou-lhes buscar áreas com condições ainda mais precárias de moradia e trabalho. Como atesta o mesmo geógrafo citado acima:

Tais populações sobrantes vão alojar-se no espaço urbano litorâneo exatamente nas áreas deixadas sem uso pelas outras atividades, geralmente áreas de grande vulnerabilidade e/ou proteção ambiental. No primeiro caso, pode-se lembrar as encostas íngremes e as zonas sujeitas a inundações, no segundo, as áreas de defesa de mananciais ou os manguezais. [...]. Enfim, estes amplos e crescentes segmentos marginalizados, continuamente alimentados pelo fluxo migratório descrito, vão ser responsáveis por outra das formas predominantes de manifestação da urbanização da zona costeira no Brasil. Trata-se do processo de favelização que, ao lado (nos dois sentidos) da segunda residência, vai compor a paisagem das periferias das grandes aglomerações e capitais litorâneas. Geralmente, as casas de veraneio ocupando os melhores sítios, e as favelas predominando nas áreas mais impróprias à ocupação. (MORAES, 1999. p. 40).

Antes de avançarmos, cabe uma consideração: se os primeiros núcleos urbanos do Brasil se situavam em sua maioria nas áreas litorâneas, isso não significava que fossem cidades exatamente “praianas”. Os grupos sociais mais abastados buscavam os altos de colinas, os terrenos mais elevados como forma de evitar a beira-mar ou beira-rio. Conhecendo Rio de Janeiro, Salvador, Olinda/Recife, que cresceram às vistas do mar, seus núcleos urbanos mais antigos buscaram esse tipo de terreno mais elevado, deixando para as áreas especificamente praianas ou ribeirinhas as atividades portuárias e pesqueiras, habitadas geralmente pelas populações “marginais” daquela sociedade. Portanto, a busca da beira-mar acabou sendo uma tendência bem mais recente. Com a mudança das sensibilidades em relação às praias – como apontado por Corbin – apenas nos finais do século XIX e começo do XX é que essas cidades efetivamente migraram para as mesmas, como mostram os elegantes bairros de Botafogo e Copacabana no Rio de Janeiro, ou Boa Viagem, em Recife.

A velha cidade da Paraíba (hoje dividida entre os Municípios de João Pessoa, Cabedelo, Lucena, Conde, Bayeux e Santa Rita), tinha suas atividades produtivas agrícolas de maior porte situadas principalmente na várzea do Paraíba (onde remanescem testemunhos arquitetônicos de antigos engenhos e capelas em meio às terras de usinas), a área portuária e propriamente urbana nos atuais Centro e Varadouro de João Pessoa e pequenos núcleos de habitação esparsa em regiões de sítios de produção de gêneros abastecimento local (farinha de mandioca, criação de animais de pequeno porte etc.) e atividades pesqueiras em áreas que hoje estão englobadas por bairros mais recentes dessas cidades. A existência de capelas isoladas nesses territórios e esparsos documentos escritos (lamentando a situação deplorável da maior parte de nossos acervos) atesta essa “presença invisível”, como podemos ver numa direção Sul-Norte em relação à comunidade de pescadores da Penha (com sua Capela de Nossa Senhora da Penha datada de 1753); a antiga e hoje desaparecida Capela do Coração de Jesus, no Cabo Branco; a Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, tombada no ano de 1938 pelo IPHAN (Processo 041-T-38), cujos remanescentes sumiram frente à voragem do crescimento urbano; a Capela de Santo Antônio, situada em Tambaú, hoje profundamente alterada em relação ao seu traçado original. Outras capelas, mais ao Norte, se situam no atual Município de Cabedelo, emancipado de João Pessoa em meados do século XX.


Confirmação da Carta de Sesmaria do Cabo Branco, para Francisco de Seixas Machado, em 12 de Agosto de 1773. Nela se menciona que ao sul a mesma confina com o Patrimônio de Nossa Senhora de Penha de França, onde se situa o remanescente da antiga Capela até os dias de hoje.  


Como se vê, por mais apagados que esses rastros tenham sido, ainda restam testemunhos de sua existência efetiva, como veremos a partir do relato de um missionário que por aqui esteve em 1839, e seguiu de Tambaú para a área urbana da antiga Paraíba, por uma rota que sugere algo próximo do atual traçado da avenida Epitácio Pessoa:       

Por volta das 4 horas da tarde contornamos o Cabo Branco e, portanto, tínhamos Tambaiú, o nosso ponto terminal, a cêrca de uma légua à nossa frente. Saltando nesse lugar, que fica apenas a seis milhas da Paraíba, evitámos um percurso de trinta ou quarenta milhas, em tôrno da ponta do Cabedelo e subindo o sinuoso [rio] Paraíba. Desembarcámos logo e, ao indagar sobre a possibilidade de obter um animal, informaram-nos que aí se conseguiria com facilidade até vinte, se preciso fôsse. Todavia, parece que em tôda povoação só havia um e mesmo assim nem ele nem seu dono se achavam na vila. [...] Logo depois veio sentar-se ao nosso lado, tomado de curiosidade, talvez, um rapazola de quatorze ou dezesseis anos [...] Êsse garoto nos disse depois, que, ao deixar a escola, voltara a atenção para a pescaria. Era o mais moço de diversos irmãos [...]. Ninguém da família sabia ler: contudo, a julgar pela casa que ocupavam na praia, parece que estavam em situação igual à de seus vizinhos. [...] Resolvidos a caminhar até a cidade conosco, nossos companheiros de viagem se ofereceram para transportar a bagagem, dividindo entre êles o preço que para isso lhes pagaríamos. [...] a-pesar-de viajarmos por uma estrada real, fomos diversas vêzes obrigados a vadear cursos d’água. Logo que o caminho deixou de lado a areia movediça da praia e enveredou pela floresta a dentro, tornou-se muito agradável, conquanto não passasse de uma tortuosa vereda. (KIDDER, 1972. p. 114/115).

 

                Pelas palavras do missionário, havia ali uma comunidade de pescadores, no interessante diálogo com o garoto, que não reproduzimos para não alongar a citação, o mesmo informou a Kidder que havia freqüentado a Escola no Palácio, mas que nada havia aprendido ali e não sabia ler nem escrever. Esse parece ser um problema que deita suas raízes nas noites dos tempos... 


Casas de palha na descida da estrada de Tambaú, em torno de 1945, próximas à atual Avenida Epitácio Pessoa. Indicação de George Henrique Vasconcelos Gomes. Quando as praias ainda não eram "áreas nobres", antes que a gentrificação chegasse. Onde foram parar esses praianos?


                Um século depois, o grande historiador e memorialista Coriolano de Medeiros, não deixou de apontar a região que se dirigia a Tambaú com o mesmo quadro que presenciara em sua infância e juventude, em finais do século XIX, ressalvada aqui a sua visão particular sobre os moradores daquelas redondezas:

Cruz do Peixe ia terminar nas matas que ensombravam a estrada de Tambaú, verdadeira floresta, coito de pretos fugidos e malfeitores que, vez por outra, assaltavam os transeuntes, arrebatando-lhes quanto conduziam. E a floresta tomava grandes proporções, especialmente antes do Sobradinho, na Cruz do Caboclo, onde se bifurcava um caminho para o Cabo Branco. Segundo a tradição, mataram ali um caboclo foragido da Penha, após o assassinato que praticara para roubar o dono daquela propriedade. Assim, por longos anos, quem passava no local via, à margem do caminho, uma cruz de madeira indicando a sepultura do malfeitor. (MEDEIROS, 1994. p. 26). 


Um tanto diferentemente de Olinda, Salvador ou Rio de Janeiro, a Paraíba tivera seu primeiro núcleo urbano bastante distanciado da beira-mar e próximo ao rio Sanhauá, afluente do Paraíba. O pesquisador Magno Erasto de Araújo, em sua tese sobre a presença de rocha e água potável para a escolha do sítio urbano que hoje corresponde ao antigo Centro e Varadouro de João Pessoa, não deixou de apontar que, entre diversos fatores, os primeiros colonizadores estiveram atentos à presença de rochas para a construção e de água potável para consumo da população. Desta forma, após uma série de prospecções, esse sítio acabou sendo considerado o mais viável para a implantação da cidade (ARAÚJO, 2012). Dessa forma, o núcleo urbano original mais distanciado da praia do que no caso de outros municípios litorâneos do Brasil e fez com que a cidade só se direcionasse para Leste séculos após o seu estabelecimento inicial.  


Missas de Natal em 1911 em Tambaú e Praia Formosa. Para os poucos veranistas e os moradores locais. Jornal O Norte [23/12/1911]. 


Isso não significava a inexistência de ocupações humanas e de atividades econômicas nessas regiões praianas, conforme já visto, mas sua história é cercada de lacunas e as fontes são mínimas. Mesmo em relação à população trabalhadora habitante na antiga região central da cidade, as informações são esparsas e fragmentárias, conforme constatou Regina Gonçalves (GONÇALVES, 2016). Em relação a outras áreas, especialmente a litorânea, uns poucos documentos da Câmara da Paraíba, datados das primeiras décadas do século XIX, nos informam sobre a presença de pontes sofrendo reparos em Gramame, Mandacaru e Tambaú, por onde circulavam pessoas e mercadorias, como farinhas, pescados outros gêneros que abasteciam o mercado urbano. Um singelo Mandado de Despesa Camarário, de 30 de Dezembro de 1814, determinou o pagamento de 30$840 (Trinta mil, oitocentos e quarenta Réis) ao Almotacé Antônio José Batista pelos reparos feitos na Ponte de Tambaú naquele mesmo ano (Livro de Mandados de Despesas da Câmara da Paraíba – 1814-1819). Já outro documento, esse um Oficio da Câmara, datado de 18/10/1828, designa Capitão do Corpo de Ordenanças da Cidade, no Distrito que vai de Tambiá, Tambaú até Cabedelo o antigo Alferes Luís d’Oliveira Diniz. Como se vê, a população quase invisível dessa região mostra um quadro bem mais complexo do que o antigo e um tanto redutor “Cidade Alta-Cidade Baixa”, que tanto tem marcado as análises sobre a vida da velha Paraíba, não sendo de toda a forma errado, mas reduzindo a escala da observação ao restrito núcleo urbano.


Mandado de Pagamento para o conserto da Ponte de Tambaú, em 30 de Dezembro de 1824. Acervo da Câmara Municipal de João Pessoa.


A “corrida para o mar” que muitas cidades brasileiras iniciaram entre finais do século XIX e começo do XX, impulsionadas pelas novas concepções em torno de zonas praianas tem no Rio de Janeiro um de seus exemplos mais ilustrativos, tal como podemos ver em relação à região de Copacabana, que fora um distante arrabalde até finais do século XIX, transformando-se rapidamente num bairro densamente povoado e prestigiado, sendo considerada a “Princesinha do Mar” já em meados do XX, sendo hoje um bairro de alta densidade populacional e uma pletora de problemas urbanos os mais diversos. 

Voltando ao nosso caso da Capital paraibana, até o começo do século XX a região praiana estava restrita às moradias de pescadores e às primeiras residências de veranistas. No Jornal O Norte de 24/12/1908 encontramos a informação sobre missas natalinas que seria realizadas em Tambaú e em Praia Formosa. Nesse mesmo ano o jornal informa os horários dos bondes que ligavam Cruz do Peixe à praia de Tambaú. Conforme percebeu Mário de Andrade, que esteve aqui no início de 1929, foi possível presenciar um animado coco, na praia de Tambaú:

Tomei banho, me vesti, etc. fui jantar, voltei pro quarto arear os dentes, ver no espelho se podia sair para um passeinho até a praia de Tambaú [...] Passeei e foi um passeio surpreendente na Lua cheia. Logo de entrada, pra me indicar a possibilidade de um bom trabalho musical por aqui, topei com os sons dum coco. O que é, o que não é: gente predestinada pra dançar e cantar, isso não tem dúvida. [...]. Mas o ganzá era batido por um piazote que não teria 6 anos, coisa admirável. Que precocidade rítmica, puxa! O piá cansou, pediu pra uma pequena fazer a parte dele. Essa teria 8 anos certos mas era uma virtuose no ganzá. Palavra que inda não vi, mesmo nas nossas habilíssimas orquestrinhas maxixeiras do Rio, quem excedesse a paraibaninha na firmeza, flexibilidade e variedade de mover o ganzá. Custei sair dali. (ANDRADE, 2021. p. 240).


Quase uma década depois, em 30 de Março de 1938, a Missão de Pesquisas Folclóricas, idealizada por Mário de Andrade e dirigida por Luiz Saia, chegou a fazer a gravação sonora e a filmar um coco na mesma praia de Tambaú. Muitos poderiam ser as mesmas pessoas que o escritor paulista havia visto em sua passagem, anos antes.    


Dança de Coco, filmada por Luiz Saia, em 1938.


Praia de Tambaú em meados do século XX. O veranismo começava a ser prática mais difundida na orla da capital paraibana. Autor não identificado. 


Seja como for, partir da segunda década do século XX, a antiga estrada de Tambaú começou a receber aportes mais consistentes de estrutura viária, dando origem à Avenida Epitácio Pessoa, que alongou suas obras até os anos 1950, tendo atraído paulatinamente novos bairros e construções de porte, como clubes esportivos, hotéis e outras, que reconfiguraram toda a orla litorânea da cidade em poucas décadas. Estudos como os de Dieb e Maia sobre a produção do espaço em torno da Epitácio Pessoa (MARTINS e MAIA, 2015) ou de Ressa sobre os loteamentos entre as décadas de 1910 e 1950 (RESSA, 2012) e de Vasconcelos Filho sobre a produção do espaço urbano no litoral Norte de João Pessoa (VASCONCELOS FILHO, 2003) mostram como essa ocupação foi se estabelecendo e como em diversos momentos algumas contradições acabaram por aflorar ao longo dos mesmos processos.

Na primeira metade da década de 70 a política nacional de expansão econômica veio dar maior impulso ao crescimento da cidade, sobretudo em suas áreas mais valorizadas. Os financiamentos do SFH voltaram-se principalmente para a construção de unidades habitacionais isoladas de alto padrão construtivo (288% de incremento em relação à década anterior), propiciando um relativo adensamento das áreas situadas nos bairros nobres da área central, na faixa de ligação do Centro com a praia e em Tambaú. A grande concentração de construções neste último bairro veio reforçar a tendência, que já se estava verificando, da orla marítima assumir uma ocupação de uso permanente, definindo um novo eixo de expansão, que se estenderia gradativamente em direção ao sul: dos bairros Cabo Branco e Tambaú para Manaíra e Bessa. (LAVIERI e LAVIERI, 1999. p. 45/46).

  

Conforme vimos anteriormente em Moraes, esses processos implicaram em diretrizes que estavam associadas a projetos nos quais a especulação imobiliária se tornou o cerne da lógica, desprezando os impactos sociais e ambientais deles decorrentes. Antigas comunidades de pescadores e outras populações praianas, radicadas desde tempos imemoriais nessa região, foram desalojadas de seus espaços tradicionais de moradia e trabalho, sendo “empurradas” para zonas de mangues e outras, sendo mais tarde acusadas de ocupação irregular, quando essa foi causada pela voragem do mercado imobiliário nas cidades em rápido e excludente crescimento. Em relação a João Pessoa, Trajano Filho aponta que:

Um vertiginoso crescimento da área urbana – no período de uma década, entre 1970 e 1980, o espaço da capital cresceu a uma taxa superior a 100% – e na intensificação da estratificação social no espaço da cidade, [...] as camadas média e alta, contando também com financiamentos do BNH, se adensariam principalmente na orla marítima, num primeiro momento convertendo tradicionais espaços de veraneio em local de moradia fixa, em bairros como Cabo Branco, Tambaú e Manaíra, para em seguida avançar decididamente seguindo as praias rumo a Cabedelo, em empreendimentos em que se combinaram forte especulação imobiliária e valorização artificial de áreas da cidade desprovidas de outros atributos, além de sua proximidade ao mar, capazes de explicar a celeridade com que se deu a sua ocupação (TRAJANO FILHO, 2006. p. 13).           


Um empreendimento hoteleiro de grande porte, realizado entre finais dos anos 1960 e início dos 70, talvez tenha se tornado a marca mais forte desse processo permeado de contradições (ROCHA, TINEM e COTRIM, 2017). O Tropical Hotel Tambaú significou um marco arquitetônico e turístico relevante, mas o seu processo de construção permeado por uma visão tecnicista e uma gestão autoritária e o saldo socioambiental do mesmo têm resultados ainda hoje questionáveis, tanto no que diz respeito à perda de espaço das populações de pescadores locais quanto à repercussão sobre a orla na praia de Manaíra (PIRES e MARINHO, 2020 e LEANDRO, s/d).     


A antiga faixa de areia tomada pelo empreendimento hoteleiro no início dos anos 1970. Daí em diante a ocupação da praia se tornou acelerada e as antigas populações de pescadores foram desalojadas de seus espaços tradicionais de vida. O ambiente praiano também não tardou a sentir os impactos da ocupação desenfreada. Autor não identificado. 


Essa lógica leva a que o espaço urbano se torne paulatinamente mais segregado socialmente e fragilizado ambientalmente. Os grandes projetos urbanos, em vez de levarem em conta uma ampla participação popular, como preconizado por Rossana Honorato em “O projeto urbanístico e a identidade da paisagem cultural” (HONORATO, 2015), se estribam na rápida acumulação de capital e numa visão estreitamente mercadológica, na maioria das vezes insensível aos eventuais danos socioambientais colaterais, como toda a cidade pode acompanhar a lenta e progressiva degradação do vale do Rio Jaguaribe, estudado por Dieb e Martins, que passaram a se tornar espaços de intensa degradação justamente à medida que os bairros praianos começaram a crescer no Leste e Norte da cidade (DIEB e MARTINS, 2017). Nesse processo, com o crescimento urbano na região litorânea, além dos bairros habitados por populações de perfil mais abastado, bairros populares se formaram no mesmo processo no qual se combinaram de forma contraditória a de incorporação demográfica como mão de obra e a exclusão social como direito à cidade (SILVA, 2021).

Esse pequeno resumo da situação poderia ser enriquecido com outras importantes contribuições realizadas por arquitetos e urbanistas, geógrafos, biólogos, ambientalistas, antropólogos e outros estudiosos que se debruçam sobre o espaço urbano e seus fenômenos de transformação e que buscam trazer aportes importantes para pensar sobre esses fenômenos de grande complexidade e cujos resultados podem ser bastante distintos das expectativas de benesses sociais e preservação ambiental. Em momentos de inflexão e surgimento de propostas de grandes intervenções urbanas, dialogar sobre todos os aspectos envolvidos e considerar fatores que extrapolem o restrito âmbito da lucratividade imediata pode e deve ser o caminho mais prudente para que se colham os melhores resultados e se evitem as eventuais catástrofes, como não tem deixado de acontecer. A recente tragédia na cidade de São Sebastião, no litoral paulista, com perda de vidas e bens, tem nos atualizado lamentavelmente quanto a isso.     

 

 

REFERÊNCIAS

 

ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. 2 ed. Belo Horizonte: Garnier, 2021.  

ARAÚJO, Magno Erasto de. Água e Rocha na definição do sítio de Nossa Senhora das Neves, atual Cidade João Pessoa – Paraíba. Salvador: Doutorado em Arquitetura e Urbanismo UFBa, 2012.

CASTELLUCCI JR., Wellington e BLUME, Luiz Henrique dos Santos (orgs.). Populações litorâneas e ribeirinhas na América Latina: Estudos interdisciplinares. (2 vols.). Salvador: Ed.UNEB, 2016. 

CORBIN, Alain. O Território do Vazio: A praia e o imaginário ocidental. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

COUTINHO, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo (Campos dos Goytacazes, 08/09/1742 – Lisboa, 12/09/1821). Obras Econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho (1794-1804). Apresentação de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. p.92-100. 

DIEB, Marília de Azevedo e MARTINS, Paula Dieb. O Rio Jaguaribe e a história urbana de João Pessoa/PB: da harmonia ao conflito. INhttp://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/1690 acesso em 30/10/2020.  

GONÇALVES, Regina C.. Como e onde viviam os trabalhadores da Cidade da Parahyba (séculos XVI-XIX)?. In: Maria Berthilde Moura Filha; Ivan Cavalcanti Filho; Márcio Cotrim. (Org.). Entre o Rio e o Mar: arquitetura residencial na cidade de João Pessoa. 1ed. João Pessoa-PB: Editora da UFPB, 2016, v. 1, p. 64-89.

HONORATO, Rossana. O projeto urbanístico e a identidade da paisagem cultural. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, nº 183.3, Vitruvius, out. 2015 https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.183/5760  acesso em 22/02/2023. 

KIDDER, Daniel Parish (1815-1891). Reminiscências de viagens e permanência no Brasil, compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias. Tradução Moacir N. Vasconcelos. São Paulo: Martins/ Ed. USP, 1972.

LEANDRO, Aldo Gomes. A Orla Marítima de João Pessoa: da Apropriação Urbana à (Re)Apropriação Turística. Observatório Geográfico de América Latina (s/d). http://www.observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal6/Geografiasocioeconomica/Geografiaregional/521.pdf acesso em 26/02/2023.

MARTINS, Paula Dieb e MAIA, Doralice Sátyro. A produção do espaço e da paisagem da Avenida Epitácio Pessoa. Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade. vol. 7, nº 10. Jan/Ago, 2015. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8642553 acesso em 30/10/2020. 

MEDEIROS, Coriolano de O. Tambiá da minha infância/Sampaio. João Pessoa: A União, 1994.

MORAES, Antônio Carlos Robert. Contribuições para a gestão da zona costeira do Brasil: elementos para uma geografia do litoral. São Paulo: Hucitec/ Ed.Usp, 1999.

PIRES, Leonardo José Pacheco e MARINHO, Eduardo Gallliza do Amaral. Contribuições para a dinâmica costeira em João Pessoa-PB: As influências do Hotel Tambaú nas praias de Tambaú e Manaíra. IN: OKARA: Geografia em Debate. Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPB. vol. 14, nº 1, 2020.  https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/okara/article/view/55539 acesso em 26/02/2023. 

RESSA, Patricia Gigliola de Queiroga. Quatro décadas de grandes expansões planejadas na capital paraibana (1913-1953). 2012. Dissertação (Mestrado em Engenharia Urbana e Ambiental) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.

ROCHA, Germana; TINEM, Nelci; COTRIM, Márcio. Hotel Tambaú, de Sérgio Bernardes. Diálogo entre poética construtiva e estrutura formal. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 206.00, Vitruvius, jul. 2017. https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.206/6627 acesso em 28/02/2023. 

SILVA, Cássio Geovani da. “A Nossa Força é a União”: Do protagonismo da Associação União da Beira Rio à estruturação do Bairro São José, João Pessoa – PB (1981-1989). João Pessoa: Dissertação em História UFPB, 2021.

TRAJANO FILHO, Francisco Sales. Do rio ao mar. Uma leitura da cidade de João Pessoa entre duas margens. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 078.05, Vitruvius, nov. 2006. https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.078/298 acesso em 20/10/2020. 

VASCONCELOS FILHO, João Manuel de. A produção e reprodução do espaço urbano no Litoral Norte de João Pessoa. Recife: Dissertação de Mestrado em Geografia-UFPE, 2003.

 

domingo, 28 de agosto de 2022

Marco extraordinário

 

Marco extraordinário

Sesquicentenário da Independência

Potência de amor e paz

Esse Brasil faz coisas

que ninguém imagina que faz

Hino do Sesquicentenário da IndependênciaMiguel Gustavo (1972)


A nação, por exemplo, é associada a uma totalidade orgânica, à imagem do corpo uno, indivisível e harmonioso; o Estado também acompanha essa descrição; suas partes funcionam como órgãos de um corpo tecnicamente integrado; o território nacional, por sua vez, é apresentado como um corpo que cresce, expande, amadurece; as classes sociais mais parecem órgãos necessários uns aos outros para que funcionem sem conflitos; o governante, por sua vez, é descrito como uma cabeça dirigente e, como tal, não se cogita em conflituação entre a cabeça e o resto do corpo, imagem da sociedade [...] corpo como metáfora de ricas implicações políticas.

Alcir Lenharo. Sacralização da Política (1986).

 

Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. 

Ato Institucional nº 5 (1968)




                – O que você vai ser quando crescer?

                – Astrônomo.

                Assim uma estranha criança respondia, cheia de certezas e certamente com uma pronúncia peculiar do nome da profissão pretendida, a essa constante indagação, que busca prescrutar o futuro imaginado, e nem sempre realizado, das melhores projeções da espécie humana.

                Afinal, o disco narrando a chegada dos homens na Lua, a passagem do Kohoutek – um intrigante cometa que mobilizou a atenção dos irmãos mais velhos e seus amigos pendurados no teto da casa com um telescópio –, e uma visão indelével de Saturno no antigo Observatório da Avenida 13 de Maio, povoavam sua imaginação.

Na figurinha 1, a revista e o disco encartado com narrativa da
chegada da Apolo XI à Lua, fizeram parte da imaginação
do pequeno em sua mais remota infância. 











                

             Corriam os primeiros anos da década de 70 e tudo parecia ser grande e bom. Brasil Grande. Potência Emergente. Maior Hidroelétrica do Mundo. Maior Campeão Mundial de Futebol. Quanta coisa bacana!

                Nesse ponto, a memória envolve – e talvez trai – a História, mas aqui se evita o necessário recurso às fontes para corroborar ou invalidar essas lembranças. No entanto, o historiador adverte:

                – Atenção, criança! Isso é memória! A memória é uma divindade! Ela tece a História! Mas ela não é a própria História!

Quem sabe, um dia, o rigor factual necessário não seja investigado como se deve? Por ora, fica a memória em cena.

                Voltando ao ponto e em meio a tudo isso, uma música povoava os primeiros meses de 1972: “É Dom Pedro I. É Dom Pedro do grito. Esse grito de glória. Que acorda a história e a vitória nos traz”. Uma moeda com as efígies do homem do grito e daquele que mandava abafar os gritos, encantava os ouvidos e as pupilas do pirralho-astrônomo.

                A única encanação do petiz era com o tal “Marco” da música. Quem era esse Marco? Que inveja tinha desse menino, ser extraordinário que começava a música. Tempos depois soube que Marco Extraordinário não era exatamente um ser humano, tratava-se de coisa imaginária, o que comprova que boa parte da inveja é sempre de seres que imaginamos ser, mas que não costumam a passar das nossas projeções e inseguranças.  

                Também havia uma tal de Minicopa da Independência, com oportuna decisão entre Brasil – Campeão! – e Portugal. Que feliz coincidência, que traçava nas quatro linhas do gramado a repetição da história de heroísmo, amor à mãe gentil e respeito ao velho pai. Que mimosa história da pátria como grande família!  

                De repente, anunciado em bom som: Lá vinha o corpo do herói! O mesmo herói que aparecia no filme ao qual o garoto fora ao cinema assistir, empolgado com a cena de um grito retumbante e altissonante, que ecoou de Norte a Sul, de Leste a Oeste, do Oipapoque ao Chuí, do Cabo Branco à Serra de Contamana, tal como decorara na Escola e se orgulhara por ter um dos extremos em sua cidade, a que via o Sol nascer mais cedo e onde baleias eram caçadas e exibidas como atrações turísticas e orgulho da terra! Na mistura das raças. Na esperança que uniu. O imenso continente nossa gente, Brasil.   

                A empolgação aumentava pelo motivo do seu segundo nome composto, Emílio, ser o mesmo do homem que fazia gritar e abafava os gritos dos que gritavam. Seu tio, Presidente do Botafogo de João Pessoa, era, em sua avaliação, uma autoridade do mesmo quilate da de Brasília. Então, juntando tudo isso, a criança deduziu que seu pomposo nome seria: Ângelo Emílio Garrastazu Médici, Presidente do Botafogo!


                      

Na figurinha 2, a efígie dos dois heróis, o do grito e o do que fazia gritar e abafava os gritos. As cabeças que dirigiam o imenso corpo da Nação. Nas figurinhas 3 e 4, enquanto isso, outros corpos, que não deviam divergir da cabeça, eram espezinhados e punidos por Sua Majestade O Capital. 



            Certo dia, o Grupo Escolar Dom Adauto fora levado ao Aeroporto Castro Pinto – nosso querido Aeropinto – para ver os poucos aviões que ali pousavam. De repente, não se podia entrar. O Vice-Presidente estava chegando à cidade e a Segurança Nacional exigia que aquelas professoras e crianças fossem impedidas de ingressar no espaço, dada a possibilidade de um infante terrorista cometer um ato tresloucado. Conversa daqui, conversa dali, um acordo foi estabelecido: as crianças ficariam perfiladas, com bandeirinhas que apareceram de algum lugar, acenando entusiasticamente para o Vice. Por ser o menorzinho da turma, cuja mãe professora levava para a Escola desde tenra idade, o petiz ficou logo no primeiro posto para saudar aquela colenda autoridade.

Na Figurinha 5, no Dom Adauto, entre astronomia e história, o fascínio pelo corpo do herói que vinha trazer a felicidade da Nação. 










                De repente, a criança estava nos braços vicepresidenciais – cujo nome, depois soube, era Augusto Rademaker –, com bandeirinha e tudo. O Almirante lhe perguntou o nome e a criança recitou todos os seus títulos, com os carimbos e estampilhas de direito! O homem não entendeu nada e a sua genitora, pressurosa, teve de explicar os motivos de tão insólita criatura estar em seus braços. Risos – dizia sua mãe que até um tal de João Agripino e um monte de engravatados riram – e a ex-criança, hoje, agradece aliviada por não ter sido hospedada nas dependências do CENIMAR em razão de tal tentativa de usurpação dos “poderes constituídos da República para salvação da Nação”.     

                Bom, mas voltando ao principal dessa memória, lá vinha o corpo do herói, direto de Portugal. Como? Viria a João Pessoa? Passaria em frente à casa da tia-avó? Que coisa maravilhosa! Dias antes, a excitação era tremenda. Veria uma caveira pela primeira vez na sua vida. E logo uma caveira imperial! Não era para qualquer um.

                Dia aprazado. Rua Rodrigues de Aquino. Muro da casa da tia-avó. Lá vinha um cortejo cheio de carros, gente, uma barafunda tremenda. A caveira estava a caminho! De repente, passa um possante carro com uma espécie de caixa. Aplausos da multidão! Sesquicentenário. E vamos mais e mais. Na festa do amor e da paz.

                – Mainha, cadê a caveira de Dom Pedro?

                – Já passou.

                – Como? Eu não vi!

                – Estava dentro daquela caixa com a bandeira.

 

                Foi a primeira grande decepção cívica do pivete!


                Algo estava errado nos astros. Como assim? Cadê a caveira? Frustração e indignação. Desde lá, todos os planos astronômicos devem ter desandado e foi só seguir caindo pelas tabelas vida à frente. Deve ter sido culpa da visão de Saturno!



Entre um e outro momento cívico, os anos se passaram e a preocupação maior foi a de comer os peixinhos de chocolate pendurados na vara do “pescador típico” enquanto invejava o avião nas mãos da irmã caçula (figurinha 6) e tocar a corneta para tentar ficar popular na Escola (figurinha 7). Os tempos da caveira imperial já tinham ficado para trás. 


                Passados cinqüenta anos, a festa necrofílica continua como um Marco Extraordinário. Tal e qual um falsete de mau gosto e de uma cafonalha insuperável, eis o coração do herói trazido para felicidade da populaça! Mas causa estranheza saber: o que o coração fazia longe do resto do corpo de seu dono? Os egípcios dos “bons tempos” de Tutmóses III e desses faraônicos personagens talvez devessem achar tudo isso, como sugere o título da música de Dalto, Muito estranho... Quanto ao dono do coração, em 1824 mandou executar um magote de revolucionários da Confederação do Equador, entre os quais Frei Caneca. Diz-se que matar padres dá um azar danado... Por isso recebeu o merecido castigo de parar numa presepada do país que o expulsou em 1831...

                Pelas ruas, os gritos já podem ser ouvidos. E não são exatamente “brados fortes retumbantes”, são mais gemidos de corpos famélicos, desprezados, ou são também gritos abafados de quase 700 mil vítimas de uma necropolítica, que pretende repetir aquela que trouxe o corpo do herói e agora promete uma verdadeira apoteose cardíaca pelas ruas do país.

                A propalada mistura das raças ainda ressoa como alerta de que todas as raças devem estar integradas, desde que algumas delas aceitem os sobejos das demais e concordem com as condições aviltantes de trabalho e de vida, como nos lembra a diva Elza Soares quando canta sobre o preço mais barato da carne no mercado.

                Além do mais, o fato de que esse país faz coisas que ninguém imagina que faz, pode nos levar ao espanto de encarar que o celeiro do mundo, o paraíso do agrobusiness pop, tenha optado pelo caminho, escolhido pela sua gente de bem – cheia de aporofobia –, de retomar a pitoresca fome como política de Estado, quando a havia praticamente debelado anos antes. Que portento para o mundo e que orgulho de herança para o futuro! Ninguém segura esse país!  

A “fila do osso” em Cuiabá e “do lixo” em Fortaleza: no paraíso agropecuário não há lugar para todos.


                Voltando às memórias da criança-astrônoma, e trazendo a História para lhe retraçar os caminhos, é possível perceber que até o logro da heróica caveira, a serpente ainda não tinha entrado no paraíso. Mas o paraíso também não era um paraíso, era um simulacro de paraíso. Fora dessa redoma, o inferno pegava fogo, como todos os infernos costumam fazer.  

                Mas os astros nos lembram do movimento, e o movimento costuma a rasgar a cortina e o biombo que procuram velar as cenas que não podem ser vistas ou abafar os gritos que não devem ser ouvidos. Mas eles vêm...

 

 

 

Ao som de sua xará Ângela Maria, ouvindo o tal Hino, mas sem a mesma empolgação de cinco décadas atrás.   





segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Sobre nomes e monumentos na Cidade que costuma mudar de nome

Não é segredo para nenhum estudante de História, e possivelmente para nenhum cidadão pessoense minimamente atento, que as injunções políticas nomearam e renomearam essa terra diversas vezes e que, talvez, o problema de saída seja simplesmente de a mesma ter um nome. Nomear é um ato de tomar posse, de possuir e de estabelecer propriedade e, quem sabe, os Potiguara sequer tivessem um nome para o solo onde hoje fica a cidade, mas para o rio que lhe dá parte substantiva de sua vida e que define a transitoriedade da mesma. Ao espoliarem a terra dos seus habitantes primitivos, os luso-espanhois lhe deram nomes, que configuravam seu senso de propriedade, tais como Nossa Senhora das Neves (demarcando um território Católico), Filipeia (demarcando um território Monárquico somado à denominação Católica); mas tudo leva a crer que o nome indígena deve ter prevalecido pelo costume, apesar de também os holandeses terem tentado impor outro nome, qual seja, o de Frederica (aportuguesamento de Frederikstadt). Em sua obra de 1675, Nova Lusitânia ou História da Guerra Brasílica, relembrando os acontecimentos da guerra contra os holandeses, o militar português Francisco de Brito Freire (c.1625-1692) atentava para essa disputa dos nomes:

 

 Por ficar entre as que já occupavaõ,na Ilha de Tamaracá, & no Rio Grande, resolveraõ,que a Província,& Cidade da Parahiba; cujo nome tomou do Rio que a banha, & lhe foi | sempre mais próprio, sem nunca o perder de todo, pelo que lhe deraõ antes os Nossos, de Felippea, depois os Olandeses, de Friderica: estes,de Friderico, Príncipe de Oranje; & aquelles,de Felippe,Rey de Espanha.



 








Brito Freire notou a questão dos nomes com argúcia.


Vejamos a análise arguta do militar seiscentista português sobre a situação de três dos nomes: os espanhóis tentaram impor Filipeia, os holandeses, por sua vez, Frederica, já Brito Freire, luso, afirma que o de Parahiba lhe era sempre o “mais próprio”, dado, talvez, ao hábito de assim seus habitantes e visitantes a nomearem. É de se supor que por estar escrevendo em 1675, quatro décadas após as guerras contra os holandeses e três após os portugueses terem rompido os laços dinásticos com a Espanha, certamente o nome indígena Parahiba fosse o mais conveniente diante da consolidação da ocupação da terra perante os seus antigos donos indígenas, que possivelmente já não consistissem mais numa efetiva ameaça de “varrer o europeu invasor de sua terra”. Se Filipeia pode ter sido útil para demarcar a posse da terra recém conquistada a partir de 1585, noventa anos depois, Parahiba talvez fosse mesmo a opção mais conveniente para dialogar com o passado, deixando os nomes espanhol e holandês como referências para os livros de História, entre eles o do próprio Brito Freire. Nossa Senhora das Neves parece não ter sido considerada pelo escritor, eventualmente porque de sua parte também não houvesse tanto interesse de um militar ligado ao Estado Monárquico privilegiar essa pertença Católica. E enfeixando tudo isso, provavelmente acima de tudo, o hábito daqueles que não escreviam tenha prevalecido e Parahiba tenha se consolidado nos falares do povo – Brito Freire nos sugere que desde os primeiros tempos – para além do que ficou escrito pelos poucos que escreviam.

Em 1930, uma mais recente e controversa viragem trouxe outro nome para a mesma cidade – que parece ter o intrigante hábito de manter uma média de um nome por século (com o clímax nos primeiros 60 anos), o que garante emprego para professores de História explicarem esses imbróglios de vez em quando – a partir de um crime de motivações pessoais com rebates políticos e, nesses últimos 91 anos, a cidade mantém o nome do finado Presidente do Estado da Paraíba. Como estamos perto de mais um século de nomeação, o que o futuro pode nos reservar? Ficaremos por aí ou inventaremos novos nomes?

O que parece ser presumível em termos de hoje – muito embora as presunções costumem a ser desmentidas na primeira ocasião e a história do futuro não pare de nos surpreender –, é que se um plebiscito fosse realizado para a opção dos cidadãos em relação ao nome efetivo da cidade, possivelmente o de João Pessoa acabasse por prevalecer pela força do hábito, mas não necessariamente pelo apego ao político. Talvez a mesma força do hábito que fez Parahiba prosperar no século XVII, no XXI jogasse contra essa nomeação fluvial-indígena.

Mas não é sobre isso exatamente que queremos falar, apesar desse intróito ter tudo a ver com o que se seguirá. Queremos falar das recentes e agudas tensões dos diálogos com o passado e que têm sacudido diversos países do mundo, como atestam os noticiários sobre as derrubadas de monumentos que se têm acometido aqui e alhures. Não se trata de assunto despido do fogo da controvérsia e não consideramos que deva ser discutido de forma linear ou panfletária, mas que exija certa reflexão.

Voltemos às décadas nas quais a cidade trocou de nome cerca de três vezes – Filipeia, Frederica, Paraíba – e a diversos rebates que se colocam atualmente diante da toponímia de um lugar bem no coração cívico de nossa cidade; falamos aqui do popular Ponto de Cem Réis, oficialmente denominado Praça Vidal de Negreiros. Antes, porém, de recuar ao século XVII, vamos fazer um sobrevôo pelo XVIII.

Comecemos por um pouco do que sabemos acerca do lugar.

Até o século XVIII esse lugar, situado na então extremidade sul da Rua Direita (atual Duque de Caxias) era um pequeno declive, que caminhando mais um pouco a sul, voltava a ter leve subida e seguia para o sul da Capitania. Qualquer um que hoje transite a pé o pequeno trecho entre a Igreja da Misericórdia e o Palácio da Redenção sentirá essa suave descida e a posterior subida. De tal maneira, considerando sua topografia, o local era chamado de “baixa” e durante certo tempo se denominava Rua da Baixa. Em algum momento do século XVIII a população de ascendência africana da cidade, ergueu na “baixa” a Igreja de sua Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que demarcou o lugar por mais de dois séculos até à sua demolição no início do século XX, assim como também se deu em relação a outro templo próximo – de Nossa Senhora das Mercês dos Homens Pardos, na atual Praça 1817 – que também foi demolido na década de 1930, de tal forma que foram apagadas marcas importantes da presença afro-brasileira na nossa cidade.

Por ter se constituído num ponto central da circulação dos bondes na cidade, a antiga “baixa” ou Largo do Rosário acabou ganhando a denominação popular de Ponto de Cem Réis, que até hoje prevalece no linguajar habitual, apesar de sua denominação oficial em homenagem ao paraibano André Vidal de Negreiros, considerado um “herói da nacionalidade” brasileira por gente como Francisco Adolfo de Varnhagen, um dos pais de nossa historiografia. Também um seu contemporâneo, o célebre Padre Antônio Vieira, o elogiou ao Rei, muito embora tenha sofrido certo desencanto depois de algum tempo.

Desse modo, temos de considerar algumas presenças e outras ausências no cenário atual: além de denominar a Praça, Vidal conta com um monumento erguido em sua homenagem naquele território. Outrossim, ironicamente e de frente a Vidal, encontramos risonhamente sentado num banco o jornalista e compositor Livardo Alves, que nos remete ao Ponto de Cem Réis, à jocosidade de seu homenageado como cronista de nossa vida cotidiana e à centralidade que lugar manteve na vida da cidade durante décadas. Por outro lado, as referências à “pequena África” (aqui inventamos o nome, mas não por puro palpite) da velha Paraíba foram devidamente apagadas nas “higienizações urbanas” das primeiras décadas do século XX.

Não iremos questionar de antemão a figura de Vidal, muito embora o mesmo, pelo seu destacado papel na expulsão dos holandeses, tenha granjeado honrarias de benesses em sua época, sendo agraciado pela monarquia portuguesa com a governança do Maranhão (1655-1656), de Pernambuco (1657-1661) e Angola (1661-1666). Em Angola, em 1665, Vidal comandou as forças lusas contra o Rei do Congo, D. Antônio I (reconhecido como um Rei Católico e até então aliado dos portugueses), que teve o seu ponto culminante na Batalha de Ambuíla, na qual as tropas do monarca congolês foram desbaratadas e aquela monarquia foi submetida à força das armas portuguesas. É concorde entre historiadores de diversas correntes que a destruição da monarquia do Congo fortaleceu as redes de tráfico escravo naquele contexto e, portanto, Vidal teve um papel central em sua época na consolidação desse terrível negócio.



 Frente a frente, em bronze, Vidal e Livardo nos contam duas histórias da cidade. 


Que fazer, então?

A história apagada de nossa pequena África. Até o momento, a única imagem remanescente encontrada da antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. 




As opções são muitas e externamos aqui o que consideramos mais conseqüente.

Não nos parece que a pura remoção do monumento efetivamente leve a uma reflexão sobre o lugar de construção de uma plena cidadania para a população afrodescendente em nossa cidade, mas consideramos mais procedente e educativo que se construa no lado oposto da dita Praça um monumento de vulto – mediante consulta pública e concurso – que destaque a presença da cultura negra em nossa terra. Isso também poderia ser acompanhado da eventual troca do nome do logradouro. Dessa maneira, Vidal e o monumento da “Pequena África paraibana” estabeleceriam esse “tenso diálogo com os tempos” como toda boa história crítica tão bem sabe fazer. Seria um processo educativo em plena praça pública. No outro canto, observando do final do século XX, Livardo Alves contemplaria o diálogo entre os séculos XVII e XVIII, e nós, em pleno XXI, aprenderíamos um pouco mais sobre a história da nossa cidade, de tal forma que possamos nos tornar cidadãos mais plenos.