No centro de New Andradine, um monumento da tradicional fogueira junina local e quatro radiais que convidam a ir para todos os lados do continente. Um "ponto de partida" para descobrir a América.
Certas percepções que
desenvolvemos ao longo de tempos, às vezes são resultado mais do acúmulo de
preconceitos ou desinformação que de decisões totalmente conscientes de nossa
parte.
O fato é que concluí a graduação
em História no octogésimo oitavo ano do século passado e tive uma experiência
bastante desagradável com as maçantes aulas de História da América, que criaram
em mim uma aversão mais ou menos inconsciente pela história de nosso
continente. Confesso que tenho certa admiração e solidariedade por Cuba, mas
nunca tive uma percepção romantizada da situação daquele país, predominando um
certo afastamento em relação à forma passional como se discute a situação
cubana. Arrastei essa situação por décadas, muito embora tivesse aqui acolá
alguma evidência de que essas cismas eram infundadas e que precisaria ampliar
meu campo de visão em relação à América.
Em quase vinte anos de
residência em Campinas (SP), comecei a ter um deslocamento da forma de olhar para
o Brasil. Umas poucas vezes que peguei as longas estradas paulistas que se
dirigiam para o oeste, parecia que me defrontava com outro mundo. Trafegar nas
rodovias Castello Branco, Raposo Tavares, Marechal Rondon, Washington Luiz e
Anhanguera me permitiu olhar para uma paisagem física e cultural muito
peculiar, marcada por uma dinâmica muito diferente do que estava acostumado. Em entrevista dada a revista brasileira no início dos anos 1980, o historiador Fernand Braudel comentara que, o passar no oeste paulista e no Mato Grosso, quarenta anos antes, tinha percebido que ali a história era algo vivo, eram cidades que surgiam do dia para a noite, pessoas que lembravam da abertura de estradas, tudo era movimento, ao contrário do interior de sua França natal, onde a história parecia passar em câmera lenta, onde tudo parecia carregar o peso de séculos.
Por volta de 1994 fui de ônibus a Corumbá (MS), para ministrar um
minicurso num Encontro Nacional de Estudantes de História. Durante a madrugada,
fiquei simplesmente pasmo na longa travessia do Rio Paraná, entre Presidente
Epitácio (SP) e Bataguassu (MS), que parecia não acabar, com aquela imensidão
de água em meio à escuridão cerrada da noite. Em tempos futuros, muitas vezes
voltei a passar por ali, e nunca consegui me livrar daquela sensação de sempre
viver a singular e emocionante experiência pela primeira vez. Na sequência da
viagem, passar pela Serra de Maracaju e atravessar o Rio Paraguai por via de
balsa foi uma dessas experiências indescritíveis sobre as quais apenas o viver
pode dar a dimensão exata. Um jantar num restaurante ao som de uma guarânia e
conhecer o mundo semi-líquido do Pantanal foram dessas coisas oníricas. Minha
primeira fronteira internacional foi em direção a Puerto Suarez, na Bolívia, da
qual minha lembrança abarca apenas uma espécie de grande feira de trecos
eletrônicos, que o colega de viagem Manolo Florentino batizou oportunamente de
“Disneylândia do consumo”.
Em 2006 me coube a aventura de
ingressar num Campus de expansão da UFMS, na cidade de Nova Andradina, situada
próxima à fronteira paulista. A posse em Campo Grande e a viagem para a nova
cidade foi a única experiência mais ou menos easy rider que tive até hoje. Tirando o fato de que estava portando
uma nomeação para um cargo público – o que não era nenhuma aventura sem destino
– fiz questão de não ver nenhuma foto da cidade na qual iria morar. O pouco que
sabia é que tinha cerca de 40 mil habitantes e estava marcada no mapa. Só. Ao
chegar no novo território, confesso meu total alívio ao ver uma Lan House, ufa!!! Comemorei ao ver um
cruzamento de trânsito com um semáforo. Intimamente só cantarolava em espírito
a velha música de Bat Masterson: “no velho oeste ele nasceu, e entre bravos se
criou...”.
No hotel de viajantes no qual
vivi dois meses, conheci algumas figuras inenarráveis, como o proprietário, uma
espécie de Dorival Caymmi que nunca viu o mar. Todos os finais de tarde ele se
sentava em cadeiras na calçada, acompanhado de seu indefectível tereré e ficava
proseando horas embaixo de duas palmeirinhas que garantiam o ar de
tropicalidade necessário. No ir e vir dos viajantes, estavam alguns
trabalhadores das linhas de transmissão das hidrelétricas do Rio Paraná – um
deles piauiense –, que se penduravam em alturas de 60 ou mais metros, bem na
beira daquele monstro de água, num tipo de trabalho que era arriscado até de pensar.
Com o tempo fui podendo fazer
comparações, percebendo algumas similaridades com o até então conhecido e as
novidades e a surpresa da descoberta. Saber que uma tal de sopa paraguaia era
um tipo de bolo salgado não foi das menores. Outras pessoas e coisas foram
passando pelas minhas retinas e ouvidos. Alunos descendentes de todos os tipos
que por ali passavam ou se radicavam, como cearenses, japoneses, gaúchos,
baianos, tchecos, paranaenses, árabes, mineiros, italianos e mais uma
miscelânea de gente que se cruzava ali, nas proximidades do centro da América
do Sul. Na cidade teve até Prefeito paraibano. Na praça central da cidade o
“paraguaizinho” reunia as pessoas de todas as procedências e lá pude comprar um
providencial guarda-chuva, numa tarde muito fria e chuvosa dois dias após minha
chegada. Flanar às altas horas da noite pelas ruas da cidade, sozinho ou
acompanhado e conversando com os amigos Marcelino, Paulo ou Charley, era uma
experiência inesquecível. Numa dessas conversas, Charley me falou sobre a
dinâmica das massas de ar oceânicas e continentais para me explicar os motivos
do calor tão forte e seco que fazia em certas épocas. Marcelino contava sobre as
aventuras de um tio que participou da abertura de cidades no norte do Mato
Grosso na década de 1970. Paulo comentava sobre suas andanças por todos os
rincões de imenso sulmatogrossense.
O cotidiano ditava o ritmo da própria história. Aos domingos, o cheiro de
churrasco tomava conta da cidade. Na região, o Rio Ivinhema, caudaloso e por
onde passaram algumas monções no século XVIII, onde pude mergulhar numa
calorenta tarde de verão. Certo final de tarde, no ônibus, em direção a Casa Verde, vi em linha reta o sol poente e a lua cheia, numa fabulosa oportunidade de realmente perceber a posição do nosso planeta no cosmo. À boca miúda algumas pessoas me contaram uma história
escabrosa sobre o “remoto passado” da fundação da cidade, cerca de cinco
décadas antes, e sobre o “desaparecimento” de trabalhadores de madeireiras numa
tal Lagoa do Sossego, que era o lembrete sobre os terríveis processos de
territorialização que, desde o século XVI, marcam a vida das diversas
fronteiras até os dias que correm. Num Museu bem montado, era possível ver
fotografias de imensas árvores, das quais praticamente nada tinha restado entre
os pastos e plantações de soja, cana e outras atividades agropecuárias. Também
eram notáveis as pequenas casas de madeira (nas quais entrei em muitas), que
lentamente desaparecem do cenário urbano, eram testemunhas bastante marcantes
das populações que ali foram se estabelecendo nos meados do século passado.
O silêncio eloqüente sobre os índios era marca indelével de processos
conflituosos relegados à neblina de uma memória tênue dos primeiros tempos.
Alguns anos depois, já em João Pessoa, ao ler a autobiografia de Darcy Ribeiro,
pude ter alguma pista dos ofaié com
os quais ele se defrontou nos anos 50, em um sítio nas beiras do Ivinhema. Essa
pequena descoberta me sugeriu um cartão de ano novo bastante diferente para os
já ex-alunos no final de 2009. Um verdadeiro “choque cultural” foi a impressão
que fiquei da visita à reserva indígena de Dourados, bem no meio da cidade, com
um monte de mazelas vividas pelos grupos indígenas que habitavam aquela área e
sofriam todas as pressões das suas rivalidades internas e da conflituosa
convivência com a sociedade não-indígena. Muitos alunos me perguntaram, na
ocasião, o que eu tinha achado daquela visita. O máximo que pude responder foi
com um silêncio pasmado que escondia minha inquietação e meus limites para
entender o que via. Confesso, apenas, que me vinha insistentemente à cabeça a leitura
que fizera anos antes, para minha pesquisa de Doutorado, da Relação da missão do
padre capuchinho Martin de Nantes, e que narrava dramaticamente aspectos cruéis
do conflito entre uma frente de expansão pecuarista e as populações indígenas
do Rio São Francisco no já longínquo século XVII.
Não pude circular mais pela
região como desejaria, mas fui várias vezes a Campo Grande, sempre observando a
paisagem, tudo que se oferecia à apreciação do olhar. As avenidas muito largas,
que indicavam uma cidade de implantação mais recente (em comparação com nossas
antigas cidades coloniais) e que sugeriam um movimento de circulação de pessoas
e coisas pelos antigos campos da vacaria. A presença sensível da fronteira
internacional, os destacamentos militares, a espacialidade da cidade, o cerrado
e o campo de visão “infinito”, tudo que convida a aguçar os nossos sentidos e o
nosso intelecto e nos lembra dois versos de Zé Ramalho: "nada digo e tudo faço, viajo nas amplidões". Municípios imensos, nos quais andamos mais de cem quilômetros sem sair de suas fronteiras. Poucas vezes fui a Dourados, cercada por uma verdadeira
potência agrícola e singrada por imensos caminhões de grãos e outros produtos que
se dirigiam a Paranaguá. Pisei uma única vez nas cidades geminadas de Ponta
Porã e Pedro Juan Caballero (Paraguai), onde entrei incrédulo num tal Shopping
China (solene templo dos eletrônicos) e vi o comércio bastante ativo nas ruas
de ambas as cidades. Muamba, bom, muamba, muita muamba. As ruas de ambas as
cidades-países guardavam a lembrança de que ali havia uma fronteira, que não
apenas deixa passar, mas também estabelece limites. De ambos os lados eram
general tal, tenente tal, capitán tal e todos por ali, no nome do chão das
cidades, protagonistas da guerra que sacudiu aquela região mais de um século
antes.
A experiência mais singular, no
entanto, se deu num final de tarde, na rodoviária de New Andradine (nome atribuído pelo meu amigo Marcelo). Esperava um
ônibus que vinha de Dourados para Campinas, quando chegou o transporte. Ao me
dirigir para o veículo, o motorista informou que haveria uma parada de 15
minutos e que esperasse. Então, se desenrolou uma dessas cenas simplesmente
fora de órbita: desceram do ônibus, trajados a caráter, cinco paquistaneses,
com seus tapetinhos e uma bússola. Localizaram Meca e realizaram suas preces
vespertinas. Uma assustada senhora me perguntou, meio sussurrando, se era o
“Bin Lader”, e eu só pude dizer que eram uns primos daquela celebridade. Ao
entrarmos no ônibus, eles mandaram ver no consumo de Coca-Cola e fizeram mais
algumas preces ao longo do caminho. Poucas horas depois, já em Teodoro Sampaio,
uma cidade praticamente nordestina no oeste de São Paulo, os companheiros de
viagem abriram seus tapetinhos para orar, na calçada próxima a um prostíbulo de
beira de estrada, atraindo a atenção de todos os transeuntes que por ali
passavam e importunando o expediente das moças. Algum tempo depois, meu
enciclopédico amigo Paulo Valadares informou que aqueles paquistaneses eram
açougueiros contratados pelo governo da Arábia Saudita para fiscalizar os
abatedouros de gado no Mato Grosso do Sul. Nossa espécie é mesmo muito
surpreendente.
Se nosso tempo é linear, ele
também comporta circularidades surpreendentes. Depois de duas décadas, voltei a
morar em João Pessoa, no extremo oriental do continente. Recriar novas raízes,
refazer minha identidade pessoense e paraibana parecia um novo desafio. Além do
mais, para meu inicial desgosto, o Departamento de História havia me atribuído
a disciplina de História da América II, justamente América, uma daquelas sobre
a qual dissera, em alguma mesa de bar em algum lugar do mundo, o disparate de
que “nunca daria aula, nem amarrado”. Além de queimar a língua tive de me virar
e queimar a cachola para montar um programa de América colonial.
Um ponto de partida foi pensar:
por que, além de não gostar das aulas de minha antiga professora, eu tinha essa
resistência em relação à América? Havia algo mais? E como eu poderia
transformar a disciplina em algo interessante para os alunos se o desinteresse
inicial era meu?
Ante essa inquietação, num
determinado dia, percebi que uma propaganda turística da cidade dava uma pista
para pensar na questão: sermos o ponto extremo oriental do continente não era
algo gratuito. Percebi que olhávamos para o continente a partir de uma
perspectiva, digamos, atlântica. O restante do continente (onde habitamos um
dos extremos) era uma experiência pouco palpável. Não apenas a nossa massa de
ar é oceânica, mas também nossa massa mental acompanha a circulação atmosférica
e parece que estamos – ou pensamos estar – bem afastados da massa continental.
A ponta dos Seixas, no extremo do continente, nos induz o olhar para o leste, para o Atlântico. Às nossas costas, está a América. Aqui poderia ser outro "ponto de partida".
Do patrimônio de minha
experiência existencial, descobri que um professor de História também pode
fazer sua descoberta pessoal da América. Aquele pedaço de continente onde vivi,
aquelas estradas nas quais atravessei centenas de quilômetros de carro ou
ônibus, aquelas pessoas ao mesmo tempo muito parecidas e profundamente
diferentes, tudo aquilo era a América que descobri sem perceber e sobre a qual
só tomei consciência quando a experiência do deslocamento e a inquietação do
desafio de professor me levaram a juntar os pedaços. Estamos numa ponta do
continente e temos pouca percepção dos profundos vínculos que acabam nos
ligando a outras terras e outras gentes. Por essas e outras, penso que esse pode
ser um ponto de partida através do qual podemos estabelecer o nosso porto de
Palos para descobrir a nossa América.
Com os alunos de New Andradine, em sala de aula, sem desconfiar que estava "descobrindo" a América.
* Para os meus alunos
e bons amigos, que me levaram e possibilitaram a descobrir a nossa América. Para Ivan Leardini, o Honorável Dan, que hoje apaga mais uma velinha.