sexta-feira, 24 de outubro de 2014

José Dias, o alterego da classe média brasileira?












Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos: não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. Machado de Assis. Dom Casmurro.


O dramaturgo Plínio Marcos, em uma de suas geniais tiradas, chamou a classe média de "classe mérdea", por enxergar nos seus "valores" uma indisfarçável e profunda hipocrisia, marcada pelo mais absoluto servilismo frente aos poderosos e a total impiedade em relação aos pobres. Tudo isso mergulhado num seboso caldo cultural de preconceitos teimosamente enraizados, onde vicejam racismo em formas disfarçadas ou explícitas, aversão aos pobres, machismo, homofobia e toda essas ditosas práticas de teor semifascista.

Tal comportamento serviu de alimento para o apoio entusiasmado de segmentos expressivos de nossas classes médias à histeria anticomunista ao estilo UDN, às infames marchas da família, ao apoio fervoroso ao golpe militar de 1964, entre outras tristes passagens de nossa história. Nos dias bicudos que correm, essa atitude se reflete no ódio insano contra melhorias na condição de vida de pobres, adesão aos discursos inflamados da bancada da bala, entre outras elevadas propostas que honram a nossa humana espécie.

Como explicar esse comportamento?

Bom, haveria uma vintena de hipóteses que abordassem a questão pelos mais diversos ângulos. Muitas de grande valor. Arriscamos, aqui, uma delas.

Bem no ocaso do século XIX, aquele que se marcou pelo auge e pela extinção legal da escravidão, Machado de Assis criou um personagem quase arquetípico, que poderia ser definido como um alterego de nossa classe média.

José Dias era um agregado da casa de Dona Glória, senhora viúva de certas posses e de família bem situada na boa sociedade. A virtuosa matrona mantinha alguns criados e escravos de ganho e vivia com conforto e distinção numa bela e bem situada residência. José Dias havia servido fielmente o finado marido de Dona Glória e se mantinha na casa como uma espécie de ministro factotum, bajulando calculadamente seus superiores e mantendo toda a criadagem sob firme comando.

Dias pode ser considerado uma espécie de avô transcendente dessa classe média, espremida entre a escravidão e o senhorio. Muita servilidade para com os maiores. Muita ferocidade para com os subalternos. No horizonte, a expectativa de amealhar alguns tostões e poder - por sua vez - viver a divina ventura de ter seus próprios escravos e poder ser chamado de senhor. Como diria o velho padre-economista-tecnocrata Antonil, com sua frieza tucana lá pelos distantes confins do século XVIII, que ser senhor era título por muitos aspirado, porque trazia consigo ser servido, obedecido e respeitado.

Pois bem, foi-se a escravidão legal, mas seus vestígios arqueológicos prosseguiram vicejando com força nos nossos alegres trópicos. Homens e mulheres negros e de toda uma paleta de cores mestiças continuaram submetidos a uma condição de infra-cidadania, sem acesso à educação, à moradia própria, ao trabalho condigno, a toda uma série de direitos básicos numa república que tenha qualquer coisa de pública. Não é casual que a Constituição de 1988 se auto-intitule "Constituição-cidadã", quando essa condição já deveria existir plenamente um século antes, com o final legal da escravidão. Não é à toa que os planos escolares ainda falem de construção da cidadania, numa clara admissão de que a mesma ainda é uma quimera para muitos brasileiros.

Para as classes médias situadas nessas fímbrias, restou o josediismo, que consiste em fazer todo o tipo de salamaleques para os ricos e vociferar contra os pobres. Sempre na esperança de um dia alcançarem o senhoriato. Não poucos egressos da pobreza, tal como dizia o sagaz senhor de engenho Brandônio, lá na Paraíba pelas profundezas do século XVII, despiram a pele velha de cobras-pobres e se engalanaram com as mais finas sedas e brocados. Esquecidos de suas humildes origens, assumiram a soberba mais absoluta. Bem no apagar das "luzes" do século XVIII, o professor de grego luso-baiano Luís Vilhena, deles falava que se empavesavam como a mais aparatosa fidalguia e tratavam os filhos como nobres, cujo Imperador da China seria indigno de ser seu servo.

Os José Dias de nossos dias seguem fascinados pelo brilho sonante do capital, leem avidamente revistas que mostram a ostentação dos muito ricos ou bregas. Em compensação, quando sobem a escada social, tratam as empregadas e serviçais como ninguém, meras máquinas de trabalhar. Criam seus pequerruchos como condinhos, marquesinhos ou barõezinhos, cercados de afagos e mimos, mas não cogitam de mandar os pimpolhos aprenderem a valorizar o trabalho manual dos que os alimentam e prestam todos os serviços para seus confortos.

Alguns, alçando-se aos píncaros universitários, ao chegar aos dourados portões da academia, esquecem que um dia foram aprendizes e se tornam verdadeiros feitores de almas. Não poucos, para dourar ainda mais seus brasões, apresentam, aos pés de seus nomes nos endereços eletrônicos, uma enxurrada de títulos e honrarias que fazem lembrar aqueles grandiloquentes e cafonas ao estilo "grão-cã dos tártaros", "mil vezes grande de Espanha", "martelo dos hereges", "herói dos campos elísios", "exterminador dos infiéis", "campeão dos fariseus" e tudo o que mais a mente humana puder elucubrar. Um e-mail que recebi com o pomposo título de "Prof. Dr. Titular fulano de tal" já diz tudo. Sobre esses tipos, cabe o que o historiador francês Jacques Le Goff falou sobre alguns intelectuais pretensamente revolucionários do medievo, cujo "sonho deles é um mecenas generoso, uma gorda prebenda, vida folgada e feliz. Querem antes, parece, tornar-se os novos beneficiários de uma ordem social do que mudá-la". Lá se vão quarentões ou cinquentões gabolas, pressurosamente copiados por seus cãezinhos amestrados de vinte e poucos...

Qualquer perspectiva de virada da situação, significa ameaça ao josediismo, que passa a aderir ao que houver de mais repressivo contra os subalternos.

- Como, eu que pastei como escravo aos pés do meu senhor, poderei deixar de ter os "meus" próprios escravos no dia em que juntar meus trocados? Isso é subversão, é comunismo, é ameaça aos sagrados valores da família, da tradição, da propriedade, do altar e da pátria, é um escândalo!!!

Nada para causar surpresa, quando um bolsista agraciado com uma temporada de estudos no exterior, se volta ferozmente contra o governo que criou condições para que essa bolsa fosse concedida.

- Como dar essa chance a outros? Se muitos mais tiverem essas bolsas, não terei meu diferencial, meu valor agregado, e não poderei ser um grão-senhor a ser servido, obedecido e respeitado...

Nada a estranhar na mesquinharia aeroportuária de nossos bem-nascidos.

- Como aceitar que uma empregada ou um pedreiro ande de avião? Onde estão as hierarquias? No tempo de vovó Donalda essa gente era tratada a base de chibata e sabia muito bem qual era o seu lugar...

Nada a estranhar quando profissionais de determinadas carreiras queiram se considerar verdadeiras nobrezas togadas.

- Como aceitar que esses cargos herdados de pai para filho desde o saudoso Tomé de Sousa caia nas mãos de rebentos dessa patuleia nojenta? Onde já se viu? Para os amigos as benesses governamentais, para os inimigos os rigores da lei...

Nada a estranhar quando os terratenentes do agrobusiness se neguem terminantemente a aprovar e por em vigência a Emenda Constitucional do Trabalho Escravo, no Anno Domini de 2014 da Graça de N.S.J.C.

- Como essa rafameia quer salários dignos e direitos trabalhistas? Onde já se viu não poder mais nem empunhar meu querido chicote em paz?... ah, nos ditosos tempos de vôinho e vóinha...

Nada a estranhar, quando aparecem nas redes antissociais, as mais diversas expressões de fascismo cultural, com seu cortejo de ódio e discriminações.

- Como essa ralé quer ser gente? No máximo lhes cabe é receber algum pouco trocado para não entupir a cara e os cornos de cachaça, bando de preguiçosos, vadios, fedorentos, gente feia. O bom mesmo é gente rica e bonita...

Nada a estranhar. Eles não falam o que pensam pensar. José Dias fala pelas suas bocas e pensa pelas suas cabeças.