sexta-feira, 24 de outubro de 2014

José Dias, o alterego da classe média brasileira?












Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos: não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. Machado de Assis. Dom Casmurro.


O dramaturgo Plínio Marcos, em uma de suas geniais tiradas, chamou a classe média de "classe mérdea", por enxergar nos seus "valores" uma indisfarçável e profunda hipocrisia, marcada pelo mais absoluto servilismo frente aos poderosos e a total impiedade em relação aos pobres. Tudo isso mergulhado num seboso caldo cultural de preconceitos teimosamente enraizados, onde vicejam racismo em formas disfarçadas ou explícitas, aversão aos pobres, machismo, homofobia e toda essas ditosas práticas de teor semifascista.

Tal comportamento serviu de alimento para o apoio entusiasmado de segmentos expressivos de nossas classes médias à histeria anticomunista ao estilo UDN, às infames marchas da família, ao apoio fervoroso ao golpe militar de 1964, entre outras tristes passagens de nossa história. Nos dias bicudos que correm, essa atitude se reflete no ódio insano contra melhorias na condição de vida de pobres, adesão aos discursos inflamados da bancada da bala, entre outras elevadas propostas que honram a nossa humana espécie.

Como explicar esse comportamento?

Bom, haveria uma vintena de hipóteses que abordassem a questão pelos mais diversos ângulos. Muitas de grande valor. Arriscamos, aqui, uma delas.

Bem no ocaso do século XIX, aquele que se marcou pelo auge e pela extinção legal da escravidão, Machado de Assis criou um personagem quase arquetípico, que poderia ser definido como um alterego de nossa classe média.

José Dias era um agregado da casa de Dona Glória, senhora viúva de certas posses e de família bem situada na boa sociedade. A virtuosa matrona mantinha alguns criados e escravos de ganho e vivia com conforto e distinção numa bela e bem situada residência. José Dias havia servido fielmente o finado marido de Dona Glória e se mantinha na casa como uma espécie de ministro factotum, bajulando calculadamente seus superiores e mantendo toda a criadagem sob firme comando.

Dias pode ser considerado uma espécie de avô transcendente dessa classe média, espremida entre a escravidão e o senhorio. Muita servilidade para com os maiores. Muita ferocidade para com os subalternos. No horizonte, a expectativa de amealhar alguns tostões e poder - por sua vez - viver a divina ventura de ter seus próprios escravos e poder ser chamado de senhor. Como diria o velho padre-economista-tecnocrata Antonil, com sua frieza tucana lá pelos distantes confins do século XVIII, que ser senhor era título por muitos aspirado, porque trazia consigo ser servido, obedecido e respeitado.

Pois bem, foi-se a escravidão legal, mas seus vestígios arqueológicos prosseguiram vicejando com força nos nossos alegres trópicos. Homens e mulheres negros e de toda uma paleta de cores mestiças continuaram submetidos a uma condição de infra-cidadania, sem acesso à educação, à moradia própria, ao trabalho condigno, a toda uma série de direitos básicos numa república que tenha qualquer coisa de pública. Não é casual que a Constituição de 1988 se auto-intitule "Constituição-cidadã", quando essa condição já deveria existir plenamente um século antes, com o final legal da escravidão. Não é à toa que os planos escolares ainda falem de construção da cidadania, numa clara admissão de que a mesma ainda é uma quimera para muitos brasileiros.

Para as classes médias situadas nessas fímbrias, restou o josediismo, que consiste em fazer todo o tipo de salamaleques para os ricos e vociferar contra os pobres. Sempre na esperança de um dia alcançarem o senhoriato. Não poucos egressos da pobreza, tal como dizia o sagaz senhor de engenho Brandônio, lá na Paraíba pelas profundezas do século XVII, despiram a pele velha de cobras-pobres e se engalanaram com as mais finas sedas e brocados. Esquecidos de suas humildes origens, assumiram a soberba mais absoluta. Bem no apagar das "luzes" do século XVIII, o professor de grego luso-baiano Luís Vilhena, deles falava que se empavesavam como a mais aparatosa fidalguia e tratavam os filhos como nobres, cujo Imperador da China seria indigno de ser seu servo.

Os José Dias de nossos dias seguem fascinados pelo brilho sonante do capital, leem avidamente revistas que mostram a ostentação dos muito ricos ou bregas. Em compensação, quando sobem a escada social, tratam as empregadas e serviçais como ninguém, meras máquinas de trabalhar. Criam seus pequerruchos como condinhos, marquesinhos ou barõezinhos, cercados de afagos e mimos, mas não cogitam de mandar os pimpolhos aprenderem a valorizar o trabalho manual dos que os alimentam e prestam todos os serviços para seus confortos.

Alguns, alçando-se aos píncaros universitários, ao chegar aos dourados portões da academia, esquecem que um dia foram aprendizes e se tornam verdadeiros feitores de almas. Não poucos, para dourar ainda mais seus brasões, apresentam, aos pés de seus nomes nos endereços eletrônicos, uma enxurrada de títulos e honrarias que fazem lembrar aqueles grandiloquentes e cafonas ao estilo "grão-cã dos tártaros", "mil vezes grande de Espanha", "martelo dos hereges", "herói dos campos elísios", "exterminador dos infiéis", "campeão dos fariseus" e tudo o que mais a mente humana puder elucubrar. Um e-mail que recebi com o pomposo título de "Prof. Dr. Titular fulano de tal" já diz tudo. Sobre esses tipos, cabe o que o historiador francês Jacques Le Goff falou sobre alguns intelectuais pretensamente revolucionários do medievo, cujo "sonho deles é um mecenas generoso, uma gorda prebenda, vida folgada e feliz. Querem antes, parece, tornar-se os novos beneficiários de uma ordem social do que mudá-la". Lá se vão quarentões ou cinquentões gabolas, pressurosamente copiados por seus cãezinhos amestrados de vinte e poucos...

Qualquer perspectiva de virada da situação, significa ameaça ao josediismo, que passa a aderir ao que houver de mais repressivo contra os subalternos.

- Como, eu que pastei como escravo aos pés do meu senhor, poderei deixar de ter os "meus" próprios escravos no dia em que juntar meus trocados? Isso é subversão, é comunismo, é ameaça aos sagrados valores da família, da tradição, da propriedade, do altar e da pátria, é um escândalo!!!

Nada para causar surpresa, quando um bolsista agraciado com uma temporada de estudos no exterior, se volta ferozmente contra o governo que criou condições para que essa bolsa fosse concedida.

- Como dar essa chance a outros? Se muitos mais tiverem essas bolsas, não terei meu diferencial, meu valor agregado, e não poderei ser um grão-senhor a ser servido, obedecido e respeitado...

Nada a estranhar na mesquinharia aeroportuária de nossos bem-nascidos.

- Como aceitar que uma empregada ou um pedreiro ande de avião? Onde estão as hierarquias? No tempo de vovó Donalda essa gente era tratada a base de chibata e sabia muito bem qual era o seu lugar...

Nada a estranhar quando profissionais de determinadas carreiras queiram se considerar verdadeiras nobrezas togadas.

- Como aceitar que esses cargos herdados de pai para filho desde o saudoso Tomé de Sousa caia nas mãos de rebentos dessa patuleia nojenta? Onde já se viu? Para os amigos as benesses governamentais, para os inimigos os rigores da lei...

Nada a estranhar quando os terratenentes do agrobusiness se neguem terminantemente a aprovar e por em vigência a Emenda Constitucional do Trabalho Escravo, no Anno Domini de 2014 da Graça de N.S.J.C.

- Como essa rafameia quer salários dignos e direitos trabalhistas? Onde já se viu não poder mais nem empunhar meu querido chicote em paz?... ah, nos ditosos tempos de vôinho e vóinha...

Nada a estranhar, quando aparecem nas redes antissociais, as mais diversas expressões de fascismo cultural, com seu cortejo de ódio e discriminações.

- Como essa ralé quer ser gente? No máximo lhes cabe é receber algum pouco trocado para não entupir a cara e os cornos de cachaça, bando de preguiçosos, vadios, fedorentos, gente feia. O bom mesmo é gente rica e bonita...

Nada a estranhar. Eles não falam o que pensam pensar. José Dias fala pelas suas bocas e pensa pelas suas cabeças.                    

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ditadura é isso aí!



 
Informação oficial notificando as autoridades sobre o perigo escondido em "inocentes" Dicionários e Palavras Cruzadas. A subversão internacional atuando solerte onde menos se esperava. 
 

    Está lá no papel amarelado da Informação 230/74 da Assessoria Especial de Segurança e Informações da Universidade Federal da Paraíba, emitida no dia 12 de Dezembro do ano 1974 da Era cristã. Oriunda dos insondáveis “escalões superiores”, se informava aos Diretores dos Centros que circulavam entre professores e alunos publicações de alta periculosidade: os verbetes subversivos do Dicionário de Ouro da Língua Portuguesa, de Éverton Florenzano e uma Palavra Cruzada Coquetel Jumbo, com cruzadinhas apologéticas a políticos cassados.
Não, incrédulo leitor, isso não é uma brincadeira digna das Diatomáceas da Lagoa, é um documento oficial da República Federativa do Brasil, que através de um de seus órgãos, constatou por intermédio de um araponga zeloso de suas funções arapongais, que o referido Dicionário trazia os verbetes capitalismo e comunismo com fortes tendências esquerdizantes. Para corroborar suas ações em defesa da segurança nacional no combate da “democracia e cristandade contra o comunismo ateu”, o operoso e modelar funcionário público dedicou-se a comparar os verbetes capitalismo e comunismo com os constantes no famoso Dicionário Aurélio, constatando que o circunspecto dicionarista tratava tais verbetes com a devida neutralidade, o que provava as intenções subversivas do seu colega.
Para mostrar como se tornava ainda mais alarmante o perigo de tal doutrinação sobre os jovens e impressionáveis cérebros de escolares e universitários, observava o espião patriota que o divertimento de palavras cruzadas instilava de forma hedionda e subliminar o veneno subversivo sobre suas pobres vítimas, fazendo referências positivas a políticos nacionais e estrangeiros comprometidos com a propaganda dos comunas, certamente teleguiados a partir dos porões moscovitas, centro nervoso do comunismo internacional.

Segundo o zeloso araponga, o "inocente" divertimento instalava o veneno comunista nas mentes incautas. Autoridades de segurança da Mickeymouselândia já determinaram a proibição de venda de cruzadinhas em aeroportos e seu uso em aviões, pois pode ter algum plano de extremistas absconso nas entrelinhas e estimular os passageiros a cometerem maluquices aéreas.
  
Certamente, uma ditadura faz grandes coisas, constrói grandes obras, promove grandes negociatas sob o sigilo cerrado das autoridades, realiza grandes atos repressivos com constrangimentos, perseguições, torturas ou eliminações físicas de seus opositores. Mas as ditaduras também são campo fértil para a imbecilidade nossa de cada dia. No cotidiano ditatorial se misturam grandes e pequenos feitos, cruéis e bárbaras ações de violência e pequenas vinditas levadas a cabo por pequenos asseclas do regime.
Essa gente dá o tipo de suporte que parece conferir uma base “popular” ao regime. É composta de pequenas peças da grande engrenagem – tais como o nosso honorável e letrado araponga que espionou o Dicionário e as Palavras Cruzadas – que articulam as coisas grandes e as miúdas, tal como tivemos oportunidade de falar em outra ocasião nessas mesmas Terras.
Uma vez enviada essa assombrosa Informação aos administradores universitários, notificava-se – para o alívio da mãe gentil e gáudio da democracia ocidental –, que os diretores da editora de ambas as publicações haviam se comprometido a corrigir os problemas nas futuras edições, em nome da segurança pátria, não deixando de desqualificar o dicionarista nos seguintes termos: “o autor, um ex-oficial da FEB, não parecia pessoa capaz de emitir suas opiniões num dicionário”!!!.

O Dicionarista-subversivo teria utilizado a publicação para difundir opiniões esquerdistas. Material de doutrinação subliminar comuna circulando entre os estudantes ingênuos, que foram protegidos pelos altos e baixos escalões da segurança nacional. "O preço da liberdade é a eterna vigilância".  

















             Consideradas essas titânicas revelações, solicitavam os escalões médios dos setores de segurança e informações aos Diretores de Centro da colenda Universidade Federal da Paraíba que evitassem a adoção de tais publicações, acrescentando prudentemente que as mesmas autoridades acadêmicas agissem de forma discreta, para evitar atenção da comunidade, especialmente dos alunos. Tudo isso registrado com os devidos carimbos que deveriam garantir o eterno sigilo dessa história singular.
A aparatosa ditadura militar parece ter sido tragada pela noite dos tempos – pelo menos o seu aspecto castrense, incômodo, espalhafatoso e oneroso, parece ter sido tirado do caminho – mas a grande ditadura econômica continua vicejando lépida e fagueira por essas plagas. Essa mesma se solda com a pequena ditadura do cotidiano, expressa nas micro-violências dos que possuem alguma fatia de metal ou poder e conseguem descarregar seu autoritarismo e intolerância sobre os que os cercam e não possuem tais requisitos.
Quanto às Palavras Cruzadas ou Dicionários não há mais necessidade de fiscalizar se são ou não subversivos, afinal, ler e escrever não são bem passatempos prestigiados nos tempos felizes que correm. Hoje, esse araponga das cruzadinhas é passível de riso, mas a coisa não foi bem assim em datas pregressas...

Dedicado a Mirza Pellicciotta, que dividiu comigo a melhor parte dessas reflexões e preservou cuidadosamente esses documentos.                         

terça-feira, 8 de julho de 2014

As chuteiras douradas e a seleção amarela

                                                                                                         Ângelo Emílio da Silva Pessoa


As collonias... são estabelecidas em utilidade da metrópole. Por máxima fundada nesta utilidade os habitantes das Collonias devem ocupar-se em cultivar, e adquirir as producções naturaes, ou matérias primeiras, para que sendo exportadas à Metrópole, esta não só della se sirva, mas aperfeiçoaduas possa também tirar das collonias o preço da mão d’obra e possa commerciar no superfluo com as Nações estrangeiras. AUTOR DESCONHECIDO. Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí. (final do século XVIII).


A título de exemplo, diz-se que o Clube de Regatas Flamengo possui cerca de 25 milhões de torcedores. O time com maior torcida no país, nesse sentido, possuiria em torno metade da população espanhola, inserido numa economia que é maior que a daquela nação ibérica. Como explicar, então, que esse time – tal como diversos outros de porte similar – viva de pires na mão, apesar dos grandes negócios de vendas de jogadores para times espanhóis, italianos, alemães, ingleses, ucranianos, turcos, e por aí vai, em escalas decrescentes de economia e poder futebolísticos?
Como explicar que a mídia esportiva brasileira comemore tão efusivamente quando um craque de um time nacional seja vendido para um time estrangeiro (quando deveria protestar veementemente contra essa situação) e – alegadamente tão ciosa da moralidade – não discuta efetivamente os esquemas de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e outros trambiques, alguns bastante notórios e bem recentes? 
Vamos a alguns fatos:
Por circunstâncias de jogo, o time brasileiro até poderia ter vencido a Alemanha no jogo que se encerrou há pouco. Um gol brasileiro no início, certa instabilidade alemã, novo gol no contra-ataque e placar seguro na base do drama, tal como se deu com a Colômbia. Afinal, a seleção alemã que enfiou 7 gols no time brasileiro, chegou a passar maus bocados com os EUA, a Argélia e Gana, que não são assim potências tão consideráveis. Por outro lado, as individualidades do time brasileiro não são jogadores de baixo nível técnico, a comissão técnica é experiente e tem resultados, mas, o conjunto, simplesmente, não aconteceu, não chegou a existir um coletivo.
Posto isso, o time brasileiro simplesmente se desmanchou como uma maionese que desanda. Na cultura popular, a amarelinha amarelou. Não padeceu de apagão futebolístico, mas de apagão moral (falo da moral coletiva e não do caráter certamente excelente de cada jogador), desmanchou-se e a prova mais dolorosa é que nenhum gol foi resultado de contra-ataques do time tedesco, mas de ataques não combatidos por uma equipe canarinho absolutamente apática, totalmente bisonha. Os 5 a 1 da Holanda sobre a Espanha foram resultantes de tentativas desesperadas dos espanhóis de correr atrás do placar adverso, os 7 a 1 da Alemanha foram obra do colapso de um quase-coletivo que não chegou a se realizar.
Parece que o time esteve a perigo em outros jogos, mas a casa só caiu na undécima hora. Digo time, e não seleção, basicamente porque não existe seleção brasileira: sem culpas dos jovens jogadores, eles não jogam no futebol brasileiro, não frequentam estádios brasileiros, não convivem com a população brasileira. São vendidos como produtos coloniais, tal e qual o procedimento que o anônimo do século XVIII dizia sobre o Brasil de antanho (ou hodierno?). Nos tornamos fornecedores de matérias-primas e usamos camisas de Barcelona, Bayern, Milan e times estrangeiros com orgulho de torcedores sinceros. Pouco a pouco as camisas e as histórias dos times nacionais vão se tornando meras barrigas de aluguel para gerar craques que irão atuar em outros gramados. A conta é fácil: de Flamengo, São Paulo, Palmeiras, Corinthians, Botafogo, Internacional, Vasco e outros times outrora poderosos, não havia NENHUM no time brasileiro. Enfim, onde não existe o futebol de qualidade no dia-a-dia não há como se gerar um selecionado verdadeiro, dá apenas para catar um time às pressas, treinar uns 30, 40 dias e torcer para a coisa engrenar à base de individualidades inspiradas.
Para o craque maior (com parcelas decrescentes do mesmo método para os demais), a receita foi abusar do merchandising, propagandear cuecas, óculos, chuteiras douradas e outros bibelôs, enquanto o futebol ia minguando a olhos vistos. Basta ver que depois das tais chuteiras douradas e umas tantas baixadas de calção para promover a fábrica de cuecas, o futebol foi declinando. Certamente o “garoto” não merecia a séria contusão e pode ainda fazer uma bela carreira, mas deve diminuir a publicidade e amassar um certo barro e comer mais feijão com arroz antes de superar gente como Rivelino, Garrincha, Nilton Santos, Jairzinho, Sócrates, Didi, Zico, Ademir da Guia, Falcão, Djalma Santos, Leônidas da Silva e tantos outros que envergaram a famosa “amarelinha”. Por ironia do destino, nas velhas gestas de cavaleiros andantes, quando algum dos duelantes movido pela vaidade vestia uma armadura ou usava uma espada dourada, acabava inapelavelmente derrotado.
Para a torcida que estava presente às partidas – a maior parte de gente que tinha bastante dinheiro para pagar o espetáculo mas nunca pisou num estádio, não vive o dia-a-dia dos times brasileiros, não participa da “cultura popular” do futebol – a coisa se resumiu a não ter palavras de ordem (ou repetir o surrado "eu sou brasileiro..."), vaiar hinos estrangeiros, xingar a Presidente, esbanjar selfies e outras coisas que não representam exatamente o que se passa nos estádios brasileiros, nos jogos sem badalação e toneladas de dinheiro, que fazem parte da cultura futebolística que foi (e digo FOI porque a coisa está passando e a história que interessa é a do futuro) a verdadeira força do futebol brasileiro.
O slogan que dizia “agora somos um”, representa, como devíamos saber, uma imaginação de nacionalidade, que supostamente expressaria nossa projeção ante o mundo. O futebol é algo no qual supostamente damos certo, somos superiores, e isso é uma espécie de contraparte do tal complexo de vira-latas, tão ciosamente e secularmente pregado pelas elites brasileiras contra o nosso povo, tratado como boçal, preguiçoso, incapaz. De repente, em meados do século XX, no cerne desse povo visto como chinfrim, nasce uma espécie de arte que poderia projetar algo positivo em torno desse imaginário da nação. Não à toa que, a par das manipulações políticas e negociatas econômicas, o futebol se constituiu n as brechas como uma espécie de patrimônio cultural do povo e da nação. Essa cultura futebolística afagou nossos sonhos de grandeza, de justiça, de melhoria. Chega a ser ironicamente doloroso – ou sintomático – comemorar o centenário da seleção com um fiasco de tal magnitude.  

É essa cultura futebolística – verdadeira galinha dos ovos de ouro – que está sendo esganada pela ganância desenfreada dos dirigentes, empresários e jornalistas-empresários do meio, que estão longe de sofrer algum prejuízo mesmo quando os times e as seleções perdem os jogos e os campeonatos. Nossa cultura futebolística já havia perdido o campeonato bem antes da Copa começar.  

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A escravidão vai acabar, seu Edgar?


          Na efervescência político-cultural do início da década de 1960, Oduvaldo Vianna Filho escreveu a peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, que marcou uma proposta de engajamento bastante relevante para a época. Hoje, passadas cinco décadas, virou meio senso comum criticar por diversos vieses a produção artístico-cultural daquele momento, mas jamais podemos abstrair que aquela produção estava situada num contexto muito próprio de conservadorismo e que teve inegáveis méritos na abertura de novas frentes políticas e estéticas no Brasil.
Mas o que nos importa, nesse momento, parafraseando o título da peça de Vianninha e inserindo um provocativo sinal de interrogação, é indagar sobre a atualidade de um velho problema: a permanência da escravidão nas fímbrias da modernidade (ou até na sua intimidade mais insuspeita). Sob as mais diversas vestimentas ou disfarces, em sua face moderna ou arcaica, a escravização de pessoas continua a alimentar um sistema de exploração escravista associado ao mais avançado e cosmopolita capitalismo. Em suas formas rurais e urbanas, nos rincões ou nas metrópoles, munidos de laptops ou enxadas, a miríade de práticas escravistas floresce onde menos esperamos. Que dizer do trabalho em condições similares à escravidão em carvoarias, plantações, extrativismo e outras ocupações de brutal exploração da força física? Absolutamente execrável. Mas, o que dizer de insidiosas formas “pós-modernas” de condições similares à escravidão, alojadas nos recônditos das sofisticadas operações do mundo cibernético-informacional?

Ao obliterarem o trabalho como dimensão constituinte da vida social, diversos intelectuais não trouxeram à baila novas formas de liberdade, mas colaboraram para disfarçar formas diversas de sofrimento humano embutidas nas nossas diversas formações sociais. Não queremos dizer que as mais que honrosas e meritórias lutas contra todas as formas de discriminação racial, religiosa, sexual e outras não possuam um potencial necessário e indispensável para a mudança de atitudes humanas, apenas argumentamos que tais lutas não deveriam, sob qualquer hipótese, assumir uma feição exclusivista ou “corporativa”, reunindo pequenos cenáculos que se limitam a digladiar contra os diferentes, na mesma medida em que exaltam o direito às diferenças.
Dito isso, a escravidão contemporânea se mantém, mesmo a par dos exaltados discursos de liberdade de alguns, munidos da mais fina retórica, mas adeptos das mais brutais ações para extrair ganhos do suor alheio. A escravidão contemporânea persiste porque existe gente (e não pouca) que ganha com isso, gente que é escravista, que tem mentalidade escravista, que pratica as mais diversas formas de autoritarismo e exploração.


                       Relevante produção intelectual se debruça sobre o problema das práticas escravistas atuais e revelam sua considerável amplitude, densidade e modalidades, uma vez que nem sempre a mesma é perceptível de maneira inequívoca e evidente, exigindo certo grau de investigação para sua detecção. Além do mais, há problemas conexos, como trabalho infantil e de grupos em estado de vulnerabilidade, além de prática de racismo, coação, entre outros delitos e crimes de variada natureza. Entidades diversas denunciam essas situações, elaborando relatórios e boletins, veiculando informações ao público.

A aprovação, ontem, dia 05 de junho de 2014, da PEC 57A/1999, que coíbe a prática do Trabalho Escravo no Brasil, foi resultante de uma longa luta e contou com grande dificuldade de tramitação. Foram decorridos 15 anos desde sua apresentação inicial. O prazo demonstra a dificuldade da luta no campo legislativo para se obter algum avanço nesse sentido. Outrossim, é necessário ir além do discurso moralista de que “todo político rouba” para entender efetivamente as questões em jogo e quais os lados da questão. O simplismo moralista só alimenta quem já ganha com isso há muito tempo.
E essa situação vem de bem longe. A Lei 3.353/1888, a conhecida Lei Áurea, extinguiu legalmente a escravidão no Brasil. Veja-se e frise-se – legalmente –, porque as diversas formas de escravidão extra-legal ou ilegal permaneceram como práticas esparsas ou generalizadas país afora, vazando o século XX e adentrando o XXI. Em 1968, por exemplo, o Inquérito 460/68 se dedicava a investigar a existência de trabalho escravo em fazendas de Goiás e Mato Grosso. Denúncias pipocavam em regiões diversas do país, especialmente nas frentes de expansão de fronteira agrícola, como o sul do Pará, muito embora essa fosse a parte mais visível do problema.


             Em 1994, a Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados instituiu a Subcomissão Especial de Trabalho Escravo, que levantou em regiões diversas do país e distintas atividades econômicas (rurais e urbanas) a persistência de formas variadas de escravidão, que implicava em “formas análogas à escravidão”, algumas vezes difíceis de definir do ponto de vista jurídico. Por serem práticas veladas em maior ou menor grau, seria necessária uma ampla definição dos possíveis significados de trabalho escravo ou em condições similares à escravidão.
Essas variegadas práticas de escravidão e a dificuldade da definição legal de suas fronteiras se tornaram brechas usadas pela bancada escravista (vamos denominá-la explicitamente assim) para tentar barrar de todas as formas a aplicação de medidas legislativas e judiciais voltadas para coibir esse nefasto abuso. Um de seus pontos-chave é o confisco legal de propriedades nas quais forem detectadas práticas de escravidão. Nesse ponto, reside o maior cerne da resistência dos setores escravistas.
Não dizemos escravistas à toa. Em 28 de janeiro de 2004, fiscais do Ministério do Trabalho que investigavam denúncias de trabalho escravo na cidade de Unaí (MG), foram assassinados a tiros. Passados 10 anos, os acusados de serem mandantes da chacina ainda não foram a julgamento. Recebem todo o tipo de acobertamento das lacunas legislativas e da morosidade judiciária em apurar tal tipo de crime. Quando se trata de poderosos, a propalada lentidão judiciária se torna ainda mais clamorosa.
A PEC do Trabalho Escravo ainda demanda sua efetiva regulamentação, o que demandará em novo front de lutas contra a bancada escravista e a certeza que a escravidão ainda não acabou, seu Edgar.            

segunda-feira, 31 de março de 2014

A Ditadura que continua

       
               Algumas teorias que tentam entender os nossos avoengos mais primitivos – aqueles que singravam as savanas em busca da sobrevivência própria e, por conseguinte, da espécie – informam que esses remotos antepassados recorriam a todo o tipo de circunstâncias par obter alimento, entre as quais o recurso à exploração de carniça de animais remanescente da predação de carnívoros mais potentes. Ser carniceiros foi uma condição que permitiu à espécie frágil obter energia suficiente para sobreviver e seguir em frente.
                De certa forma, nossos ascendentes primevos competiam com as hienas pela carniça e esse traço da espécie parece ter remanescido em alguns, mesmo após milênios de evolução física e cultural. Parte da espécie, digamos, a que conseguiu avançar, passou a entender que não precisa manter-se em luta contra tudo e todos para sobreviver, viver e bem viver. Estabelecendo meios de cooperação, de colaboração, usando o intelecto verdadeiramente sapiens, compreendeu que seria possível melhorar a vida de cada um e de todos e não gerar danos maiores ao restante da espécie e da natureza.
                Outra parte, parece que manteve ao traço psicológico das hienas e tem necessidade quase transcendente de carniça para seguir em frente. Empunhando um chicote ou um avançado aparelho eletrônico, está ali um ser humano em seu estado mais atrasado, que podemos denominar homem capitalista (diga-se, de passagem, que estamos usando o termo homem em seu velho significado genérico, muito embora concretamente esse ser possa se manifestar em sexos, gêneros, etnias, culturas distintas). Para esses seres atrasados, comportar-se como feras parece ser algo meritório (se vangloriar como fera, animal, águia etc), mas seria melhor que os denominássemos como hienas, uma vez que é da carniça que realmente gostam, abusando do perfil de valentões (desse tipo de covardes que só são valentes mesmo quando estão cercado por gangs de agressores físicos ou de assessores munidos de laptops), enquanto escondem sua fragilidade intrínseca, pois só conseguem viver sugando o esforço alheio, roubando e saqueando o suor dos demais, agredindo o restante de sua espécie e o planeta. Há algo mais irracional do que alguém se jactar de ser um bilionário? É simplesmente ridículo para o conjunto da espécie.

Hiena em versão antiquada, empunhando o chicote.

Hienas em versão moderna continuam a farejar carniça.
      
























                 É desses humanos atrasados que se fizeram os regimes de exploração social (em suas múltiplas e concretas configurações) e o capitalismo e que se criam as diversas formas de ditaduras políticas, econômicas e culturais, que nos fazem lembrar que está mais que atual o dilema “socialismo ou barbárie” que importa em escolhas que realmente exigem coragem: não devemos sugar o trabalho e o esforço alheios, não devemos aceitar que outros sejam explorados ou massacrados em função de suas diferenças ou fragilidades. Socialismo não deve significar qualquer forma de ditadura, mas a supressão mesmo de todos os regimes que promovam essas mazelas.
                Chegando de perto à ditadura brasileira, podemos identificar seus traços em séculos de escravismo, no profundo desprezo que nossas elites-hienas têm por aqueles que lhes alimentam e geram as condições de seus luxos (inclusive com a formulação de “teorias” de inferioridade mal disfarçadas pelo cinismo e pela hipocrisia), pela luta insana que empreendem pela manutenção de privilégios arraigados por séculos. Nesse sentido e para estes, a ditadura não foi um problema, foi exatamente uma solução encontrada para brecar as lutas dos subalternos para fazer valer seus direitos: a luta de trabalhadores rurais e urbanos pela melhoria de suas condições concretas de vida (salários, moradia, lazer, educação, cultura), a luta de negros, mulheres, minorias religiosas, indígenas, homossexuais e todos os grupos diferenciados pelo respeito aos seus direitos e ao exercício de suas diferenças. A luta, todas as lutas pela dignidade, pelo respeito, pelos direitos, pela igualdade de fruição aos bens da natureza e da humanidade.

Cabra marcado para morrer pela ditadura "antes" da ditadura.

                É essencial não esquecer que as forças armadas foram instrumentalizadas para fazer esse serviço sujo para grandes empresários, banqueiros, latifundiários, burocratas de alto calibre, intolerantes de toda a espécie, enfim, essa fauna de hienas que apoiou entusiasticamente o golpe militar e que usa todos os meios para manter seus privilégios, mesmo após terem deixado de contar com a necessidade do recurso manu militari para tentarem perpetuar seu status quo. Indispensável, ainda, frisar que a maior parte dos veículos de comunicação apoiou o golpe e o regime, sendo, no mínimo, um show de hipocrisia das organizações Globo e grupos quejandos, que procuram se colocar como vítimas de um regime do qual foram beneficiários. Se tivessem maior (ou alguma) inteligência, os milicos de pijama e suas viúvas, em vez de tentarem fazer histriônicas “novas” marchas da família, deveriam avaliar como foram serviçais do grande capital e, logrados pela insânia anticomunista, acabaram por levar toda a culpa por uma tragédia da qual são sócios em larga medida, mas não atores exclusivos.   
                Além do horrendo massacre dos opositores políticos, não podemos deixar de lembrar do massacre cotidiano de pobres nas favelas ou no campo, que também são atos de repressão política, levados à frente por gente do naipe dos esquadrões da morte, mão branca e todo esse tipo de psicopatas que atuaram nas margens semi-legais do regime. Não há de se esquecer, também, das vultuosas negociatas feitas à sombra do autoritarismo, que desmentem cabalmente a mentira de que não havia corrupção na ditadura: havia e muita, escondida pela censura e pela repressão. Não podemos esquecer, também, de tantos parlamentares e juízes e outras autoridades, que exerciam vilmente o servilismo às autoridades títeres do grande capital.

A repressão política da ditadura.
A repressão social da ditadura.
Esse lado civil da ditadura, hoje, tenta usar todos os meios para disfarçar a continuidade da manutenção de sua dominação e privilégios, tenta editar a história conforme lhe convém, tenta apostar na empulhação ou no esquecimento. O mínimo arranhão nesses privilégios, acende, para eles, o sinal de alerta. Derrubaram João Goulart não por acreditarem no risco do comunismo iminente (talvez algumas daquelas senhorinhas alarmadas pelo Padre Peyton), mas por saberem concretamente que seu “bem-bom” estava em risco; e as hienas não estão dispostas a abrir mão de seu quinhão de carniça, mesmo que o mesmo exceda em muito o necessário para a sua vida.         
A ditadura cotidiana do capitalismo

Os anos se passam e se atualizam os processos de dominação e exploração, mas também avançam as formas de resistência e inteligência que exigem saídas lúcidas para evitar a completa barbárie que parece muito apetecível às hienas. Precisamos fazer jus à nossa condição de sapiens.  

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Estátua do deus Apolo é encontrada na faixa de Gaza

Rara estátua de Apolo encontrada na faixa de Gaza. 












Perdida durante séculos, uma rara estátua de bronze do deus grego Apolo ressurgiu na faixa de Gaza. A aparição, entretanto, foi breve: "confiscada" por integrantes do Hamas, ela ficou desaparecida durante meses até ser colocada à venda no site eBay e, em seguida, ser "apreendida" por autoridades palestinas. Segundo o Hamas, não há previsão de quando a estátua voltará a ser visita pelo público, se é que isso pode acontecer.
Segundo um pescador palestino, a estátua de aproximadamente 500 kg teria sido encontrada durante uma de suas saídas para o mar em agosto de 2013. Ele teria carregado a estátua para casa em seu burro, sem ter ideia de seu valor arqueológico.
Trata-se de um grande achado. "Eu diria que é um achado que não tem preço. É praticamente como perguntar qual é o valor de La Gioconda (a Mona Lisa) no Museu do Louvre", afirmou Jean-Michel de Tarragon, historiador da Escola Arqueológica de Jerusalém, à 'Reuters TV'. Pelo estado da estátua, ele diz ainda que não poderia ter sido encontrada no leito do mar.
Ahmed al-Bursch, diretor de arqueologia do Ministério do Turismo, disse que viu a estátua e prometeu que o pescador receberá sua recompensa, assim que a investigação criminal seja concluída. Só então, disse, o deus Apolo poderá ser visto em sua glória.
"Instituições internacionais já nos contataram para oferecer ajuda com o processo de restauração", afirmou. Segundo ele, um museu em Genebra e o próprio Louvre já demonstraram interesse em um empréstimo do bronze de Apolo.