sexta-feira, 6 de junho de 2014

A escravidão vai acabar, seu Edgar?


          Na efervescência político-cultural do início da década de 1960, Oduvaldo Vianna Filho escreveu a peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, que marcou uma proposta de engajamento bastante relevante para a época. Hoje, passadas cinco décadas, virou meio senso comum criticar por diversos vieses a produção artístico-cultural daquele momento, mas jamais podemos abstrair que aquela produção estava situada num contexto muito próprio de conservadorismo e que teve inegáveis méritos na abertura de novas frentes políticas e estéticas no Brasil.
Mas o que nos importa, nesse momento, parafraseando o título da peça de Vianninha e inserindo um provocativo sinal de interrogação, é indagar sobre a atualidade de um velho problema: a permanência da escravidão nas fímbrias da modernidade (ou até na sua intimidade mais insuspeita). Sob as mais diversas vestimentas ou disfarces, em sua face moderna ou arcaica, a escravização de pessoas continua a alimentar um sistema de exploração escravista associado ao mais avançado e cosmopolita capitalismo. Em suas formas rurais e urbanas, nos rincões ou nas metrópoles, munidos de laptops ou enxadas, a miríade de práticas escravistas floresce onde menos esperamos. Que dizer do trabalho em condições similares à escravidão em carvoarias, plantações, extrativismo e outras ocupações de brutal exploração da força física? Absolutamente execrável. Mas, o que dizer de insidiosas formas “pós-modernas” de condições similares à escravidão, alojadas nos recônditos das sofisticadas operações do mundo cibernético-informacional?

Ao obliterarem o trabalho como dimensão constituinte da vida social, diversos intelectuais não trouxeram à baila novas formas de liberdade, mas colaboraram para disfarçar formas diversas de sofrimento humano embutidas nas nossas diversas formações sociais. Não queremos dizer que as mais que honrosas e meritórias lutas contra todas as formas de discriminação racial, religiosa, sexual e outras não possuam um potencial necessário e indispensável para a mudança de atitudes humanas, apenas argumentamos que tais lutas não deveriam, sob qualquer hipótese, assumir uma feição exclusivista ou “corporativa”, reunindo pequenos cenáculos que se limitam a digladiar contra os diferentes, na mesma medida em que exaltam o direito às diferenças.
Dito isso, a escravidão contemporânea se mantém, mesmo a par dos exaltados discursos de liberdade de alguns, munidos da mais fina retórica, mas adeptos das mais brutais ações para extrair ganhos do suor alheio. A escravidão contemporânea persiste porque existe gente (e não pouca) que ganha com isso, gente que é escravista, que tem mentalidade escravista, que pratica as mais diversas formas de autoritarismo e exploração.


                       Relevante produção intelectual se debruça sobre o problema das práticas escravistas atuais e revelam sua considerável amplitude, densidade e modalidades, uma vez que nem sempre a mesma é perceptível de maneira inequívoca e evidente, exigindo certo grau de investigação para sua detecção. Além do mais, há problemas conexos, como trabalho infantil e de grupos em estado de vulnerabilidade, além de prática de racismo, coação, entre outros delitos e crimes de variada natureza. Entidades diversas denunciam essas situações, elaborando relatórios e boletins, veiculando informações ao público.

A aprovação, ontem, dia 05 de junho de 2014, da PEC 57A/1999, que coíbe a prática do Trabalho Escravo no Brasil, foi resultante de uma longa luta e contou com grande dificuldade de tramitação. Foram decorridos 15 anos desde sua apresentação inicial. O prazo demonstra a dificuldade da luta no campo legislativo para se obter algum avanço nesse sentido. Outrossim, é necessário ir além do discurso moralista de que “todo político rouba” para entender efetivamente as questões em jogo e quais os lados da questão. O simplismo moralista só alimenta quem já ganha com isso há muito tempo.
E essa situação vem de bem longe. A Lei 3.353/1888, a conhecida Lei Áurea, extinguiu legalmente a escravidão no Brasil. Veja-se e frise-se – legalmente –, porque as diversas formas de escravidão extra-legal ou ilegal permaneceram como práticas esparsas ou generalizadas país afora, vazando o século XX e adentrando o XXI. Em 1968, por exemplo, o Inquérito 460/68 se dedicava a investigar a existência de trabalho escravo em fazendas de Goiás e Mato Grosso. Denúncias pipocavam em regiões diversas do país, especialmente nas frentes de expansão de fronteira agrícola, como o sul do Pará, muito embora essa fosse a parte mais visível do problema.


             Em 1994, a Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados instituiu a Subcomissão Especial de Trabalho Escravo, que levantou em regiões diversas do país e distintas atividades econômicas (rurais e urbanas) a persistência de formas variadas de escravidão, que implicava em “formas análogas à escravidão”, algumas vezes difíceis de definir do ponto de vista jurídico. Por serem práticas veladas em maior ou menor grau, seria necessária uma ampla definição dos possíveis significados de trabalho escravo ou em condições similares à escravidão.
Essas variegadas práticas de escravidão e a dificuldade da definição legal de suas fronteiras se tornaram brechas usadas pela bancada escravista (vamos denominá-la explicitamente assim) para tentar barrar de todas as formas a aplicação de medidas legislativas e judiciais voltadas para coibir esse nefasto abuso. Um de seus pontos-chave é o confisco legal de propriedades nas quais forem detectadas práticas de escravidão. Nesse ponto, reside o maior cerne da resistência dos setores escravistas.
Não dizemos escravistas à toa. Em 28 de janeiro de 2004, fiscais do Ministério do Trabalho que investigavam denúncias de trabalho escravo na cidade de Unaí (MG), foram assassinados a tiros. Passados 10 anos, os acusados de serem mandantes da chacina ainda não foram a julgamento. Recebem todo o tipo de acobertamento das lacunas legislativas e da morosidade judiciária em apurar tal tipo de crime. Quando se trata de poderosos, a propalada lentidão judiciária se torna ainda mais clamorosa.
A PEC do Trabalho Escravo ainda demanda sua efetiva regulamentação, o que demandará em novo front de lutas contra a bancada escravista e a certeza que a escravidão ainda não acabou, seu Edgar.            

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