Na efervescência político-cultural do início da década de 1960, Oduvaldo Vianna Filho escreveu a peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, que marcou uma proposta de engajamento bastante relevante para a época. Hoje, passadas cinco décadas, virou meio senso comum criticar por diversos vieses a produção artístico-cultural daquele momento, mas jamais podemos abstrair que aquela produção estava situada num contexto muito próprio de conservadorismo e que teve inegáveis méritos na abertura de novas frentes políticas e estéticas no Brasil.
Mas o que nos importa, nesse
momento, parafraseando o título da peça de Vianninha e inserindo um provocativo
sinal de interrogação, é indagar sobre a atualidade de um velho problema: a
permanência da escravidão nas fímbrias da modernidade (ou até na sua intimidade
mais insuspeita). Sob as mais diversas vestimentas ou disfarces, em sua face
moderna ou arcaica, a escravização de pessoas continua a alimentar um sistema
de exploração escravista associado ao mais avançado e cosmopolita capitalismo. Em
suas formas rurais e urbanas, nos rincões ou nas metrópoles, munidos de laptops
ou enxadas, a miríade de práticas escravistas floresce onde menos esperamos. Que
dizer do trabalho em condições similares à escravidão em carvoarias,
plantações, extrativismo e outras ocupações de brutal exploração da força
física? Absolutamente execrável. Mas, o que dizer de insidiosas formas “pós-modernas”
de condições similares à escravidão, alojadas nos recônditos das sofisticadas
operações do mundo cibernético-informacional?
Ao obliterarem o trabalho como
dimensão constituinte da vida social, diversos intelectuais não trouxeram à
baila novas formas de liberdade, mas colaboraram para disfarçar formas diversas
de sofrimento humano embutidas nas nossas diversas formações sociais. Não
queremos dizer que as mais que honrosas e meritórias lutas contra todas as
formas de discriminação racial, religiosa, sexual e outras não possuam um
potencial necessário e indispensável para a mudança de atitudes humanas, apenas
argumentamos que tais lutas não deveriam, sob qualquer hipótese, assumir uma
feição exclusivista ou “corporativa”, reunindo pequenos cenáculos que se
limitam a digladiar contra os diferentes, na mesma medida em que exaltam o
direito às diferenças.
Dito isso, a escravidão
contemporânea se mantém, mesmo a par dos exaltados discursos de liberdade de
alguns, munidos da mais fina retórica, mas adeptos das mais brutais ações para
extrair ganhos do suor alheio. A escravidão contemporânea persiste porque
existe gente (e não pouca) que ganha com isso, gente que é escravista, que tem
mentalidade escravista, que pratica as mais diversas formas de autoritarismo e
exploração.
Relevante produção intelectual se debruça sobre o problema das práticas escravistas atuais e revelam sua considerável amplitude, densidade e modalidades, uma vez que nem sempre a mesma é perceptível de maneira inequívoca e evidente, exigindo certo grau de investigação para sua detecção. Além do mais, há problemas conexos, como trabalho infantil e de grupos em estado de vulnerabilidade, além de prática de racismo, coação, entre outros delitos e crimes de variada natureza. Entidades diversas denunciam essas situações, elaborando relatórios e boletins, veiculando informações ao público.
A aprovação, ontem, dia 05 de
junho de 2014, da PEC 57A/1999, que coíbe a prática do Trabalho Escravo no
Brasil, foi resultante de uma longa luta e contou com grande dificuldade de
tramitação. Foram decorridos 15 anos desde sua apresentação inicial. O prazo
demonstra a dificuldade da luta no campo legislativo para se obter algum avanço
nesse sentido. Outrossim, é necessário ir além do discurso moralista de que “todo
político rouba” para entender efetivamente as questões em jogo e quais os lados
da questão. O simplismo moralista só alimenta quem já ganha com isso há muito
tempo.
E essa situação vem de bem longe.
A Lei 3.353/1888, a conhecida Lei Áurea, extinguiu legalmente a escravidão no
Brasil. Veja-se e frise-se – legalmente –, porque as diversas formas de escravidão
extra-legal ou ilegal permaneceram como práticas esparsas ou generalizadas país
afora, vazando o século XX e adentrando o XXI. Em 1968, por exemplo, o
Inquérito 460/68 se dedicava a investigar a existência de trabalho escravo em
fazendas de Goiás e Mato Grosso. Denúncias pipocavam em regiões diversas do
país, especialmente nas frentes de expansão de fronteira agrícola, como o sul
do Pará, muito embora essa fosse a parte mais visível do problema.
Em 1994, a Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados instituiu a Subcomissão Especial de Trabalho Escravo, que levantou em regiões diversas do país e distintas atividades econômicas (rurais e urbanas) a persistência de formas variadas de escravidão, que implicava em “formas análogas à escravidão”, algumas vezes difíceis de definir do ponto de vista jurídico. Por serem práticas veladas em maior ou menor grau, seria necessária uma ampla definição dos possíveis significados de trabalho escravo ou em condições similares à escravidão.
Essas variegadas práticas de
escravidão e a dificuldade da definição legal de suas fronteiras se tornaram brechas
usadas pela bancada escravista (vamos denominá-la explicitamente assim) para
tentar barrar de todas as formas a aplicação de medidas legislativas e
judiciais voltadas para coibir esse nefasto abuso. Um de seus pontos-chave é o
confisco legal de propriedades nas quais forem detectadas práticas de
escravidão. Nesse ponto, reside o maior cerne da resistência dos setores
escravistas.
Não dizemos escravistas à toa. Em
28 de janeiro de 2004, fiscais do Ministério do Trabalho que investigavam denúncias
de trabalho escravo na cidade de Unaí (MG), foram assassinados a tiros.
Passados 10 anos, os acusados de serem mandantes da chacina ainda não foram a julgamento. Recebem todo o tipo de acobertamento das lacunas legislativas e da
morosidade judiciária em apurar tal tipo de crime. Quando se trata de
poderosos, a propalada lentidão judiciária se torna ainda mais clamorosa.
A PEC do Trabalho Escravo ainda
demanda sua efetiva regulamentação, o que demandará em novo front de lutas contra
a bancada escravista e a certeza que a escravidão ainda não acabou, seu Edgar.
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