segunda-feira, 31 de março de 2014

A Ditadura que continua

       
               Algumas teorias que tentam entender os nossos avoengos mais primitivos – aqueles que singravam as savanas em busca da sobrevivência própria e, por conseguinte, da espécie – informam que esses remotos antepassados recorriam a todo o tipo de circunstâncias par obter alimento, entre as quais o recurso à exploração de carniça de animais remanescente da predação de carnívoros mais potentes. Ser carniceiros foi uma condição que permitiu à espécie frágil obter energia suficiente para sobreviver e seguir em frente.
                De certa forma, nossos ascendentes primevos competiam com as hienas pela carniça e esse traço da espécie parece ter remanescido em alguns, mesmo após milênios de evolução física e cultural. Parte da espécie, digamos, a que conseguiu avançar, passou a entender que não precisa manter-se em luta contra tudo e todos para sobreviver, viver e bem viver. Estabelecendo meios de cooperação, de colaboração, usando o intelecto verdadeiramente sapiens, compreendeu que seria possível melhorar a vida de cada um e de todos e não gerar danos maiores ao restante da espécie e da natureza.
                Outra parte, parece que manteve ao traço psicológico das hienas e tem necessidade quase transcendente de carniça para seguir em frente. Empunhando um chicote ou um avançado aparelho eletrônico, está ali um ser humano em seu estado mais atrasado, que podemos denominar homem capitalista (diga-se, de passagem, que estamos usando o termo homem em seu velho significado genérico, muito embora concretamente esse ser possa se manifestar em sexos, gêneros, etnias, culturas distintas). Para esses seres atrasados, comportar-se como feras parece ser algo meritório (se vangloriar como fera, animal, águia etc), mas seria melhor que os denominássemos como hienas, uma vez que é da carniça que realmente gostam, abusando do perfil de valentões (desse tipo de covardes que só são valentes mesmo quando estão cercado por gangs de agressores físicos ou de assessores munidos de laptops), enquanto escondem sua fragilidade intrínseca, pois só conseguem viver sugando o esforço alheio, roubando e saqueando o suor dos demais, agredindo o restante de sua espécie e o planeta. Há algo mais irracional do que alguém se jactar de ser um bilionário? É simplesmente ridículo para o conjunto da espécie.

Hiena em versão antiquada, empunhando o chicote.

Hienas em versão moderna continuam a farejar carniça.
      
























                 É desses humanos atrasados que se fizeram os regimes de exploração social (em suas múltiplas e concretas configurações) e o capitalismo e que se criam as diversas formas de ditaduras políticas, econômicas e culturais, que nos fazem lembrar que está mais que atual o dilema “socialismo ou barbárie” que importa em escolhas que realmente exigem coragem: não devemos sugar o trabalho e o esforço alheios, não devemos aceitar que outros sejam explorados ou massacrados em função de suas diferenças ou fragilidades. Socialismo não deve significar qualquer forma de ditadura, mas a supressão mesmo de todos os regimes que promovam essas mazelas.
                Chegando de perto à ditadura brasileira, podemos identificar seus traços em séculos de escravismo, no profundo desprezo que nossas elites-hienas têm por aqueles que lhes alimentam e geram as condições de seus luxos (inclusive com a formulação de “teorias” de inferioridade mal disfarçadas pelo cinismo e pela hipocrisia), pela luta insana que empreendem pela manutenção de privilégios arraigados por séculos. Nesse sentido e para estes, a ditadura não foi um problema, foi exatamente uma solução encontrada para brecar as lutas dos subalternos para fazer valer seus direitos: a luta de trabalhadores rurais e urbanos pela melhoria de suas condições concretas de vida (salários, moradia, lazer, educação, cultura), a luta de negros, mulheres, minorias religiosas, indígenas, homossexuais e todos os grupos diferenciados pelo respeito aos seus direitos e ao exercício de suas diferenças. A luta, todas as lutas pela dignidade, pelo respeito, pelos direitos, pela igualdade de fruição aos bens da natureza e da humanidade.

Cabra marcado para morrer pela ditadura "antes" da ditadura.

                É essencial não esquecer que as forças armadas foram instrumentalizadas para fazer esse serviço sujo para grandes empresários, banqueiros, latifundiários, burocratas de alto calibre, intolerantes de toda a espécie, enfim, essa fauna de hienas que apoiou entusiasticamente o golpe militar e que usa todos os meios para manter seus privilégios, mesmo após terem deixado de contar com a necessidade do recurso manu militari para tentarem perpetuar seu status quo. Indispensável, ainda, frisar que a maior parte dos veículos de comunicação apoiou o golpe e o regime, sendo, no mínimo, um show de hipocrisia das organizações Globo e grupos quejandos, que procuram se colocar como vítimas de um regime do qual foram beneficiários. Se tivessem maior (ou alguma) inteligência, os milicos de pijama e suas viúvas, em vez de tentarem fazer histriônicas “novas” marchas da família, deveriam avaliar como foram serviçais do grande capital e, logrados pela insânia anticomunista, acabaram por levar toda a culpa por uma tragédia da qual são sócios em larga medida, mas não atores exclusivos.   
                Além do horrendo massacre dos opositores políticos, não podemos deixar de lembrar do massacre cotidiano de pobres nas favelas ou no campo, que também são atos de repressão política, levados à frente por gente do naipe dos esquadrões da morte, mão branca e todo esse tipo de psicopatas que atuaram nas margens semi-legais do regime. Não há de se esquecer, também, das vultuosas negociatas feitas à sombra do autoritarismo, que desmentem cabalmente a mentira de que não havia corrupção na ditadura: havia e muita, escondida pela censura e pela repressão. Não podemos esquecer, também, de tantos parlamentares e juízes e outras autoridades, que exerciam vilmente o servilismo às autoridades títeres do grande capital.

A repressão política da ditadura.
A repressão social da ditadura.
Esse lado civil da ditadura, hoje, tenta usar todos os meios para disfarçar a continuidade da manutenção de sua dominação e privilégios, tenta editar a história conforme lhe convém, tenta apostar na empulhação ou no esquecimento. O mínimo arranhão nesses privilégios, acende, para eles, o sinal de alerta. Derrubaram João Goulart não por acreditarem no risco do comunismo iminente (talvez algumas daquelas senhorinhas alarmadas pelo Padre Peyton), mas por saberem concretamente que seu “bem-bom” estava em risco; e as hienas não estão dispostas a abrir mão de seu quinhão de carniça, mesmo que o mesmo exceda em muito o necessário para a sua vida.         
A ditadura cotidiana do capitalismo

Os anos se passam e se atualizam os processos de dominação e exploração, mas também avançam as formas de resistência e inteligência que exigem saídas lúcidas para evitar a completa barbárie que parece muito apetecível às hienas. Precisamos fazer jus à nossa condição de sapiens.