domingo, 28 de agosto de 2022

Marco extraordinário

 

Marco extraordinário

Sesquicentenário da Independência

Potência de amor e paz

Esse Brasil faz coisas

que ninguém imagina que faz

Hino do Sesquicentenário da IndependênciaMiguel Gustavo (1972)


A nação, por exemplo, é associada a uma totalidade orgânica, à imagem do corpo uno, indivisível e harmonioso; o Estado também acompanha essa descrição; suas partes funcionam como órgãos de um corpo tecnicamente integrado; o território nacional, por sua vez, é apresentado como um corpo que cresce, expande, amadurece; as classes sociais mais parecem órgãos necessários uns aos outros para que funcionem sem conflitos; o governante, por sua vez, é descrito como uma cabeça dirigente e, como tal, não se cogita em conflituação entre a cabeça e o resto do corpo, imagem da sociedade [...] corpo como metáfora de ricas implicações políticas.

Alcir Lenharo. Sacralização da Política (1986).

 

Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. 

Ato Institucional nº 5 (1968)




                – O que você vai ser quando crescer?

                – Astrônomo.

                Assim uma estranha criança respondia, cheia de certezas e certamente com uma pronúncia peculiar do nome da profissão pretendida, a essa constante indagação, que busca prescrutar o futuro imaginado, e nem sempre realizado, das melhores projeções da espécie humana.

                Afinal, o disco narrando a chegada dos homens na Lua, a passagem do Kohoutek – um intrigante cometa que mobilizou a atenção dos irmãos mais velhos e seus amigos pendurados no teto da casa com um telescópio –, e uma visão indelével de Saturno no antigo Observatório da Avenida 13 de Maio, povoavam sua imaginação.

Na figurinha 1, a revista e o disco encartado com narrativa da
chegada da Apolo XI à Lua, fizeram parte da imaginação
do pequeno em sua mais remota infância. 











                

             Corriam os primeiros anos da década de 70 e tudo parecia ser grande e bom. Brasil Grande. Potência Emergente. Maior Hidroelétrica do Mundo. Maior Campeão Mundial de Futebol. Quanta coisa bacana!

                Nesse ponto, a memória envolve – e talvez trai – a História, mas aqui se evita o necessário recurso às fontes para corroborar ou invalidar essas lembranças. No entanto, o historiador adverte:

                – Atenção, criança! Isso é memória! A memória é uma divindade! Ela tece a História! Mas ela não é a própria História!

Quem sabe, um dia, o rigor factual necessário não seja investigado como se deve? Por ora, fica a memória em cena.

                Voltando ao ponto e em meio a tudo isso, uma música povoava os primeiros meses de 1972: “É Dom Pedro I. É Dom Pedro do grito. Esse grito de glória. Que acorda a história e a vitória nos traz”. Uma moeda com as efígies do homem do grito e daquele que mandava abafar os gritos, encantava os ouvidos e as pupilas do pirralho-astrônomo.

                A única encanação do petiz era com o tal “Marco” da música. Quem era esse Marco? Que inveja tinha desse menino, ser extraordinário que começava a música. Tempos depois soube que Marco Extraordinário não era exatamente um ser humano, tratava-se de coisa imaginária, o que comprova que boa parte da inveja é sempre de seres que imaginamos ser, mas que não costumam a passar das nossas projeções e inseguranças.  

                Também havia uma tal de Minicopa da Independência, com oportuna decisão entre Brasil – Campeão! – e Portugal. Que feliz coincidência, que traçava nas quatro linhas do gramado a repetição da história de heroísmo, amor à mãe gentil e respeito ao velho pai. Que mimosa história da pátria como grande família!  

                De repente, anunciado em bom som: Lá vinha o corpo do herói! O mesmo herói que aparecia no filme ao qual o garoto fora ao cinema assistir, empolgado com a cena de um grito retumbante e altissonante, que ecoou de Norte a Sul, de Leste a Oeste, do Oipapoque ao Chuí, do Cabo Branco à Serra de Contamana, tal como decorara na Escola e se orgulhara por ter um dos extremos em sua cidade, a que via o Sol nascer mais cedo e onde baleias eram caçadas e exibidas como atrações turísticas e orgulho da terra! Na mistura das raças. Na esperança que uniu. O imenso continente nossa gente, Brasil.   

                A empolgação aumentava pelo motivo do seu segundo nome composto, Emílio, ser o mesmo do homem que fazia gritar e abafava os gritos dos que gritavam. Seu tio, Presidente do Botafogo de João Pessoa, era, em sua avaliação, uma autoridade do mesmo quilate da de Brasília. Então, juntando tudo isso, a criança deduziu que seu pomposo nome seria: Ângelo Emílio Garrastazu Médici, Presidente do Botafogo!


                      

Na figurinha 2, a efígie dos dois heróis, o do grito e o do que fazia gritar e abafava os gritos. As cabeças que dirigiam o imenso corpo da Nação. Nas figurinhas 3 e 4, enquanto isso, outros corpos, que não deviam divergir da cabeça, eram espezinhados e punidos por Sua Majestade O Capital. 



            Certo dia, o Grupo Escolar Dom Adauto fora levado ao Aeroporto Castro Pinto – nosso querido Aeropinto – para ver os poucos aviões que ali pousavam. De repente, não se podia entrar. O Vice-Presidente estava chegando à cidade e a Segurança Nacional exigia que aquelas professoras e crianças fossem impedidas de ingressar no espaço, dada a possibilidade de um infante terrorista cometer um ato tresloucado. Conversa daqui, conversa dali, um acordo foi estabelecido: as crianças ficariam perfiladas, com bandeirinhas que apareceram de algum lugar, acenando entusiasticamente para o Vice. Por ser o menorzinho da turma, cuja mãe professora levava para a Escola desde tenra idade, o petiz ficou logo no primeiro posto para saudar aquela colenda autoridade.

Na Figurinha 5, no Dom Adauto, entre astronomia e história, o fascínio pelo corpo do herói que vinha trazer a felicidade da Nação. 










                De repente, a criança estava nos braços vicepresidenciais – cujo nome, depois soube, era Augusto Rademaker –, com bandeirinha e tudo. O Almirante lhe perguntou o nome e a criança recitou todos os seus títulos, com os carimbos e estampilhas de direito! O homem não entendeu nada e a sua genitora, pressurosa, teve de explicar os motivos de tão insólita criatura estar em seus braços. Risos – dizia sua mãe que até um tal de João Agripino e um monte de engravatados riram – e a ex-criança, hoje, agradece aliviada por não ter sido hospedada nas dependências do CENIMAR em razão de tal tentativa de usurpação dos “poderes constituídos da República para salvação da Nação”.     

                Bom, mas voltando ao principal dessa memória, lá vinha o corpo do herói, direto de Portugal. Como? Viria a João Pessoa? Passaria em frente à casa da tia-avó? Que coisa maravilhosa! Dias antes, a excitação era tremenda. Veria uma caveira pela primeira vez na sua vida. E logo uma caveira imperial! Não era para qualquer um.

                Dia aprazado. Rua Rodrigues de Aquino. Muro da casa da tia-avó. Lá vinha um cortejo cheio de carros, gente, uma barafunda tremenda. A caveira estava a caminho! De repente, passa um possante carro com uma espécie de caixa. Aplausos da multidão! Sesquicentenário. E vamos mais e mais. Na festa do amor e da paz.

                – Mainha, cadê a caveira de Dom Pedro?

                – Já passou.

                – Como? Eu não vi!

                – Estava dentro daquela caixa com a bandeira.

 

                Foi a primeira grande decepção cívica do pivete!


                Algo estava errado nos astros. Como assim? Cadê a caveira? Frustração e indignação. Desde lá, todos os planos astronômicos devem ter desandado e foi só seguir caindo pelas tabelas vida à frente. Deve ter sido culpa da visão de Saturno!



Entre um e outro momento cívico, os anos se passaram e a preocupação maior foi a de comer os peixinhos de chocolate pendurados na vara do “pescador típico” enquanto invejava o avião nas mãos da irmã caçula (figurinha 6) e tocar a corneta para tentar ficar popular na Escola (figurinha 7). Os tempos da caveira imperial já tinham ficado para trás. 


                Passados cinqüenta anos, a festa necrofílica continua como um Marco Extraordinário. Tal e qual um falsete de mau gosto e de uma cafonalha insuperável, eis o coração do herói trazido para felicidade da populaça! Mas causa estranheza saber: o que o coração fazia longe do resto do corpo de seu dono? Os egípcios dos “bons tempos” de Tutmóses III e desses faraônicos personagens talvez devessem achar tudo isso, como sugere o título da música de Dalto, Muito estranho... Quanto ao dono do coração, em 1824 mandou executar um magote de revolucionários da Confederação do Equador, entre os quais Frei Caneca. Diz-se que matar padres dá um azar danado... Por isso recebeu o merecido castigo de parar numa presepada do país que o expulsou em 1831...

                Pelas ruas, os gritos já podem ser ouvidos. E não são exatamente “brados fortes retumbantes”, são mais gemidos de corpos famélicos, desprezados, ou são também gritos abafados de quase 700 mil vítimas de uma necropolítica, que pretende repetir aquela que trouxe o corpo do herói e agora promete uma verdadeira apoteose cardíaca pelas ruas do país.

                A propalada mistura das raças ainda ressoa como alerta de que todas as raças devem estar integradas, desde que algumas delas aceitem os sobejos das demais e concordem com as condições aviltantes de trabalho e de vida, como nos lembra a diva Elza Soares quando canta sobre o preço mais barato da carne no mercado.

                Além do mais, o fato de que esse país faz coisas que ninguém imagina que faz, pode nos levar ao espanto de encarar que o celeiro do mundo, o paraíso do agrobusiness pop, tenha optado pelo caminho, escolhido pela sua gente de bem – cheia de aporofobia –, de retomar a pitoresca fome como política de Estado, quando a havia praticamente debelado anos antes. Que portento para o mundo e que orgulho de herança para o futuro! Ninguém segura esse país!  

A “fila do osso” em Cuiabá e “do lixo” em Fortaleza: no paraíso agropecuário não há lugar para todos.


                Voltando às memórias da criança-astrônoma, e trazendo a História para lhe retraçar os caminhos, é possível perceber que até o logro da heróica caveira, a serpente ainda não tinha entrado no paraíso. Mas o paraíso também não era um paraíso, era um simulacro de paraíso. Fora dessa redoma, o inferno pegava fogo, como todos os infernos costumam fazer.  

                Mas os astros nos lembram do movimento, e o movimento costuma a rasgar a cortina e o biombo que procuram velar as cenas que não podem ser vistas ou abafar os gritos que não devem ser ouvidos. Mas eles vêm...

 

 

 

Ao som de sua xará Ângela Maria, ouvindo o tal Hino, mas sem a mesma empolgação de cinco décadas atrás.