segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mais do que um café com leite à mesa eleitoral


Em Republicanismo e Federalismo, a historiadora Rosa Godoy demonstrou os complexos arranjos de poder que marcaram a politica dos governadores na República Velha.



Um certo vício historiográfico, de reduzir a política brasileira da primeira república (também conhecida por República Velha) a uma mera troca de poderes e cargos entre São Paulo e Minas Gerais, implica numa dificuldade em entender dois componentes fundamentais da estrutura política brasileira: o federalismo e a presença das classes populares.
Os arranjos de poder, embora tivessem um componente central nos Estados economicamente hegemônicos, não podia prescindir das composições mais miúdas, com os poderes de Estados de menor poder econômico ou com influências locais representativas. Some-se a isso que essa política dos Estados – conhecida como política dos governadores – não deixava de receber um efeito complicador, com a presença dos mais diversos grupos sociais em disputa, para além dos estreitos quadros das elites regionais. Embora os movimentos sociais não dispusessem de um poder de fogo que possa ser superdimensionado, não podemos desprezar sua presença no tabuleiro político da República Velha.
Assim, a realização das eleições presidenciais e a composição subseqüente dos ministérios, implicava na necessidade de atender a uma complexa rede de poderes, que contemplasse as forças hegemônicas, mas que também acomodassem os grupos de menor poder de fogo, cujo apoio era indispensável para possibilitar estabilidade política. O equilíbrio de poder era mais precário do que a simples idéia de uma locomotiva carregando um monte de vagões vazios, como a elite econômica paulista propagandeava aos quatro ventos, para exaltar a pujança da terra bandeirante. Na hora de dividir o bolo de poder, algum naco deveria contemplar os grupos locais, por mais desprezíveis que eles pudessem parecer aos homens da paulicéia. Na hora em que a população mais pobre ameaçasse se manifestar e desafiar privilégios, os pretensos requintados barões do café ou os toscos coronéis do interior se uniam para garantir a exclusividade de seu mando.

Em Poder Local e Ditadura Militar, a historiadora Monique Cittadino demonstrou como o poder central precisou transacionar com poderes locais, mesmo de Estados de maior fragilidade econômica.





Mesmo nos momentos de extrema centralização do poder em torno do Executivo Federal (no Estado Novo e na ditadura militar), o concurso de grupos de apoio ao poder central era essencial para garantir as bases de exercício da dominação política. Getúlio Vargas ou os militares tiveram que se defrontar com situações, muitas vezes incômodas, para equilibrar e tentar atender as demandas de seus próprios grupos de sustentação.
Colocando em perspectiva as eleições de 2010, podemos concluir em largas pinceladas que o coquetel que compõe o poder conta com a presença efetiva das profundas e complexas diferenças regionais expressas pelo nosso peculiar federalismo, além da presença cada vez “perturbadora” das classes populares no cenário político, o que tolda as simplistas visões daqueles que pensam que tudo nesse país se resolve exclusivamente no espigão da Avenida Paulista.

Em "Quando novos personagens entraram em cena", o sociólogo Éder Sáder demonstrou a presença cada vez mais significativa dos movimentos sociais e das classes populares no cenário político brasileiro.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Os Abutres da Montanha

Alívio em relação ao drama humano.







“Em 1860 foi promulgada a lei de inspeção das minas que previa a fiscalização delas por funcionários especialmente nomeados para esse fim... Essa lei ficou sendo letra morta em virtude do número ridiculamente ínfimo dos inspetores nomeados, dos escassos poderes que lhes foram conferidos e de outras causas que serão objeto de nosso exame”
Karl Marx, O Capital. (1867)


Não há segredos que um dos mais periculosos trabalhos desempenhados por seres humanos é o que acontece em minas, nas quais se extraem riquezas minerais diversas e onde acontecem dramas aterrorizantes, como explosões, soterramentos e mortes, divulgados quase que diariamente pelos meios noticiosos. Também não é segredo dos mais recônditos que a ânsia de lucros, leva as grandes mineradoras (como, de resto, muitas empresas nesse velho e bom mundo capitalista, inclusive em sua modalidade chinesa) a maximizarem a exploração do trabalho e a se descuidarem dos custos mais básicos de segurança dos trabalhadores.
Ao discutir a legislação fabril inglesa na segunda metade do século XIX, Marx já chamava atenção para a precariedade do trabalho nas minas e a inexistência de uma fiscalização rigorosa das condições de trabalho em seu interior. Esse diagnóstico chega a ganhar bastante atualidade, mesmo depois de mais de um século que nos separa dos escritos acima.
O Chile, que reúne uma vasta reserva de riquezas minerais, tem uma atribulada história nesse sentido. É bem conhecido o massacre de cerca de 3.600 mineiros de salitre na cidade de Iquique, em 1907, celebrizado pela Cantata Popular de Santa Maria de Iquique, de autoria de Luis Advis e gravada pelo Grupo Quilapayun, em 1970. Esses mineiros, mobilizados para reivindicar melhorias em suas condições de vida e trabalho, se refugiaram na Escola de Santa Maria daquela cidade, onde acabaram sendo chacinados pela repressão desencadeada pelas autoridades, que acobertaram os interesses dos donos das mineradoras e dos setores fabris e comerciais a eles associados.

Na Cantata, a lembrança da brutal repressão aos mineiros de Iquique, no início do século XX.












Três anos após a gravação da cantata, lançada durante o governo socialista de Salvador Allende, o Chile sofreu um brutal golpe de estado em 11 de setembro de 1973, comandado pelo famigerado general Pinochet (um dos maiores carrascos do século XX), que desencadeou uma feroz repressão aos opositores de vários matizes e aos movimentos de trabalhadores. Entre os financiadores do golpe, estavam grandes empresas mineradoras, como a norte-americana Anaconda, que também recebeu apoio direto do governo de Washington para “salvar a democracia” através de uma ditadura das mais sombrias que já se abateu sobre o nosso continente.
No recente drama dos mineradores chilenos soterrados e salvos com sucesso, acompanhado com suspense pelas pessoas em todo o mundo, além da grandiosa questão da dimensão humana envolvida na luta pela sobrevivência, estão contidos todos os ingredientes que caracterizam esse tipo de situação e que provém de uma longa duração do nosso sistema de produção de riquezas sob a égide do capital: intensa exploração dos trabalhadores, precariedade das condições de segurança em função da redução de custos pelas gestões “modernas” das empresas, pouco caso ou cumplicidade das autoridades responsáveis pela fiscalização. Some-se a isso um aspecto que Marx apenas entreviu em meados do oitocentos, mas que mostra toda a sua desenvoltura nos dias que correm: a manipulação intensa dos acontecimentos pelos meios de comunicação, que massificam o acontecimento, mas escamoteiam questões essenciais.
Para além do drama humano e do verdadeiro heroísmo desses trabalhadores – um dos aspectos profundamente edificantes dessa história – se escondem interesses sórdidos, a respeito dos quais muitas verdades têm de ser apuradas. A exaltação patrioteira comandada pelo Presidente Piñera, tenta obliterar a necessidade de investigações muito rigorosas, que levem à punição efetiva dos responsáveis pela quase tragédia que terminou bem, para alívio de todos nós. O exame das questões ligadas à cupidez da empresa e à leniência das autoridades precisam vir à luz do dia, assim como os mineiros que foram tirados das profundezas da terra.


Em A Montanha dos Sete Abutres, um jornalista sedento por fama, não hesitou em explorar a tragédia de um mineiro soterrado.


Em 1951, o grande ator Kirk Douglas estrelou o filme “A Montanha dos Sete Abutres”, no qual desempenhou o papel de um medíocre e inescrupuloso jornalista de uma pequena cidade nos rincões do Novo México, que ficou sabendo que um trabalhador mineiro havia sido soterrado numa velha mina. Aproveitando-se da boa fé e da confiança do trabalhador, o jornalista manipulou o drama em função de sua própria notoriedade, sendo responsável pelo trágico desfecho final da trama. Não é segredo para ninguém que a carniça cheira mal e longe e que muitos abutres já estão se aproximando dos trabalhadores resgatados e de suas famílias, farejando oportunidades de grandes e suculentos negócios (promoção política, venda de produtos, produção de filmes de sucesso etc.). A nossa expectativa é que, passado o drama e encerrada a exploração midiática, verdadeiras providências sejam tomadas para garantir a integridade desses trabalhadores (potenciais vítimas da exploração e posterior descarte de suas imagens) e de outros, que continuam a se arriscar diariamente nos recônditos da terra e estão sujeitos a acidentes com desfechos mais trágicos, para propiciar o conforto de nosso bom e velho mundo capitalista.