quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Os Abutres da Montanha

Alívio em relação ao drama humano.







“Em 1860 foi promulgada a lei de inspeção das minas que previa a fiscalização delas por funcionários especialmente nomeados para esse fim... Essa lei ficou sendo letra morta em virtude do número ridiculamente ínfimo dos inspetores nomeados, dos escassos poderes que lhes foram conferidos e de outras causas que serão objeto de nosso exame”
Karl Marx, O Capital. (1867)


Não há segredos que um dos mais periculosos trabalhos desempenhados por seres humanos é o que acontece em minas, nas quais se extraem riquezas minerais diversas e onde acontecem dramas aterrorizantes, como explosões, soterramentos e mortes, divulgados quase que diariamente pelos meios noticiosos. Também não é segredo dos mais recônditos que a ânsia de lucros, leva as grandes mineradoras (como, de resto, muitas empresas nesse velho e bom mundo capitalista, inclusive em sua modalidade chinesa) a maximizarem a exploração do trabalho e a se descuidarem dos custos mais básicos de segurança dos trabalhadores.
Ao discutir a legislação fabril inglesa na segunda metade do século XIX, Marx já chamava atenção para a precariedade do trabalho nas minas e a inexistência de uma fiscalização rigorosa das condições de trabalho em seu interior. Esse diagnóstico chega a ganhar bastante atualidade, mesmo depois de mais de um século que nos separa dos escritos acima.
O Chile, que reúne uma vasta reserva de riquezas minerais, tem uma atribulada história nesse sentido. É bem conhecido o massacre de cerca de 3.600 mineiros de salitre na cidade de Iquique, em 1907, celebrizado pela Cantata Popular de Santa Maria de Iquique, de autoria de Luis Advis e gravada pelo Grupo Quilapayun, em 1970. Esses mineiros, mobilizados para reivindicar melhorias em suas condições de vida e trabalho, se refugiaram na Escola de Santa Maria daquela cidade, onde acabaram sendo chacinados pela repressão desencadeada pelas autoridades, que acobertaram os interesses dos donos das mineradoras e dos setores fabris e comerciais a eles associados.

Na Cantata, a lembrança da brutal repressão aos mineiros de Iquique, no início do século XX.












Três anos após a gravação da cantata, lançada durante o governo socialista de Salvador Allende, o Chile sofreu um brutal golpe de estado em 11 de setembro de 1973, comandado pelo famigerado general Pinochet (um dos maiores carrascos do século XX), que desencadeou uma feroz repressão aos opositores de vários matizes e aos movimentos de trabalhadores. Entre os financiadores do golpe, estavam grandes empresas mineradoras, como a norte-americana Anaconda, que também recebeu apoio direto do governo de Washington para “salvar a democracia” através de uma ditadura das mais sombrias que já se abateu sobre o nosso continente.
No recente drama dos mineradores chilenos soterrados e salvos com sucesso, acompanhado com suspense pelas pessoas em todo o mundo, além da grandiosa questão da dimensão humana envolvida na luta pela sobrevivência, estão contidos todos os ingredientes que caracterizam esse tipo de situação e que provém de uma longa duração do nosso sistema de produção de riquezas sob a égide do capital: intensa exploração dos trabalhadores, precariedade das condições de segurança em função da redução de custos pelas gestões “modernas” das empresas, pouco caso ou cumplicidade das autoridades responsáveis pela fiscalização. Some-se a isso um aspecto que Marx apenas entreviu em meados do oitocentos, mas que mostra toda a sua desenvoltura nos dias que correm: a manipulação intensa dos acontecimentos pelos meios de comunicação, que massificam o acontecimento, mas escamoteiam questões essenciais.
Para além do drama humano e do verdadeiro heroísmo desses trabalhadores – um dos aspectos profundamente edificantes dessa história – se escondem interesses sórdidos, a respeito dos quais muitas verdades têm de ser apuradas. A exaltação patrioteira comandada pelo Presidente Piñera, tenta obliterar a necessidade de investigações muito rigorosas, que levem à punição efetiva dos responsáveis pela quase tragédia que terminou bem, para alívio de todos nós. O exame das questões ligadas à cupidez da empresa e à leniência das autoridades precisam vir à luz do dia, assim como os mineiros que foram tirados das profundezas da terra.


Em A Montanha dos Sete Abutres, um jornalista sedento por fama, não hesitou em explorar a tragédia de um mineiro soterrado.


Em 1951, o grande ator Kirk Douglas estrelou o filme “A Montanha dos Sete Abutres”, no qual desempenhou o papel de um medíocre e inescrupuloso jornalista de uma pequena cidade nos rincões do Novo México, que ficou sabendo que um trabalhador mineiro havia sido soterrado numa velha mina. Aproveitando-se da boa fé e da confiança do trabalhador, o jornalista manipulou o drama em função de sua própria notoriedade, sendo responsável pelo trágico desfecho final da trama. Não é segredo para ninguém que a carniça cheira mal e longe e que muitos abutres já estão se aproximando dos trabalhadores resgatados e de suas famílias, farejando oportunidades de grandes e suculentos negócios (promoção política, venda de produtos, produção de filmes de sucesso etc.). A nossa expectativa é que, passado o drama e encerrada a exploração midiática, verdadeiras providências sejam tomadas para garantir a integridade desses trabalhadores (potenciais vítimas da exploração e posterior descarte de suas imagens) e de outros, que continuam a se arriscar diariamente nos recônditos da terra e estão sujeitos a acidentes com desfechos mais trágicos, para propiciar o conforto de nosso bom e velho mundo capitalista.

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