Informação oficial notificando as autoridades sobre o perigo escondido em "inocentes" Dicionários e Palavras Cruzadas. A subversão internacional atuando solerte onde menos se esperava.
Está lá no papel amarelado da Informação 230/74 da Assessoria Especial de Segurança e Informações da Universidade Federal da Paraíba, emitida no dia 12 de Dezembro do ano 1974 da Era cristã. Oriunda dos insondáveis “escalões superiores”, se informava aos Diretores dos Centros que circulavam entre professores e alunos publicações de alta periculosidade: os verbetes subversivos do Dicionário de Ouro da Língua Portuguesa, de Éverton Florenzano e uma Palavra Cruzada Coquetel Jumbo, com cruzadinhas apologéticas a políticos cassados.
Não, incrédulo leitor, isso não é
uma brincadeira digna das Diatomáceas da Lagoa, é um documento oficial da
República Federativa do Brasil, que através de um de seus órgãos, constatou por
intermédio de um araponga zeloso de suas funções arapongais, que o referido
Dicionário trazia os verbetes capitalismo e comunismo com fortes tendências
esquerdizantes. Para corroborar suas ações em defesa da segurança nacional no
combate da “democracia e cristandade contra o comunismo ateu”, o operoso e
modelar funcionário público dedicou-se a comparar os verbetes capitalismo e
comunismo com os constantes no famoso Dicionário Aurélio, constatando que o
circunspecto dicionarista tratava tais verbetes com a devida neutralidade, o
que provava as intenções subversivas do seu colega.
Para mostrar como se tornava ainda
mais alarmante o perigo de tal doutrinação sobre os jovens e impressionáveis
cérebros de escolares e universitários, observava o espião patriota que o
divertimento de palavras cruzadas instilava de forma hedionda e subliminar o
veneno subversivo sobre suas pobres vítimas, fazendo referências positivas a
políticos nacionais e estrangeiros comprometidos com a propaganda dos comunas,
certamente teleguiados a partir dos porões moscovitas, centro nervoso do
comunismo internacional.
Certamente, uma ditadura faz
grandes coisas, constrói grandes obras, promove grandes negociatas sob o sigilo
cerrado das autoridades, realiza grandes atos repressivos com constrangimentos,
perseguições, torturas ou eliminações físicas de seus opositores. Mas as
ditaduras também são campo fértil para a imbecilidade nossa de cada dia. No
cotidiano ditatorial se misturam grandes e pequenos feitos, cruéis e bárbaras
ações de violência e pequenas vinditas levadas a cabo por pequenos asseclas do
regime.
Essa gente dá o tipo de suporte
que parece conferir uma base “popular” ao regime. É composta de pequenas peças
da grande engrenagem – tais como o nosso honorável e letrado araponga que
espionou o Dicionário e as Palavras Cruzadas – que articulam as coisas grandes
e as miúdas, tal como tivemos oportunidade de falar em outra ocasião nessas
mesmas Terras.
Uma vez enviada essa assombrosa
Informação aos administradores universitários, notificava-se – para o alívio da
mãe gentil e gáudio da democracia ocidental –, que os diretores da editora de
ambas as publicações haviam se comprometido a corrigir os problemas nas futuras
edições, em nome da segurança pátria, não deixando de desqualificar o
dicionarista nos seguintes termos: “o autor, um ex-oficial da FEB, não parecia
pessoa capaz de emitir suas opiniões num dicionário”!!!.
Consideradas essas titânicas revelações, solicitavam os escalões médios dos setores de segurança e informações aos Diretores de Centro da colenda Universidade Federal da Paraíba que evitassem a adoção de tais publicações, acrescentando prudentemente que as mesmas autoridades acadêmicas agissem de forma discreta, para evitar atenção da comunidade, especialmente dos alunos. Tudo isso registrado com os devidos carimbos que deveriam garantir o eterno sigilo dessa história singular.
A aparatosa ditadura militar
parece ter sido tragada pela noite dos tempos – pelo menos o seu aspecto
castrense, incômodo, espalhafatoso e oneroso, parece ter sido tirado do caminho
– mas a grande ditadura econômica continua vicejando lépida e fagueira por
essas plagas. Essa mesma se solda com a pequena ditadura do cotidiano, expressa
nas micro-violências dos que possuem alguma fatia de metal ou poder e conseguem
descarregar seu autoritarismo e intolerância sobre os que os cercam e não
possuem tais requisitos.
Quanto às Palavras Cruzadas ou
Dicionários não há mais necessidade de fiscalizar se são ou não subversivos,
afinal, ler e escrever não são bem passatempos prestigiados nos tempos felizes
que correm. Hoje, esse araponga das cruzadinhas é passível de riso, mas a coisa
não foi bem assim em datas pregressas...
Dedicado a Mirza Pellicciotta, que dividiu comigo a melhor parte dessas reflexões e preservou cuidadosamente esses documentos.
Um comentário:
Caríssimo Dr. Ângelo
Um documento representativo, que surge em um período extremo de autoritarismo, estupidez e violência no país, com permanência histórica evidente na atualidade, leva os leitores a pensar.
Acredito que as ideias de igualdade, justiça, liberdade, participação direta da população nas decisões políticas da nação e defesa da democracia que, a meu ver, são a única opção de avanço da sociedade, apresentam-se de forma muito frágil e inconsistente entre nós. São sempre argumentos de resistência, ainda não configuram uma forma de mentalidade que possibilite opção real de mudança.
Em contrapartida, é possível observar, em nosso processo histórico, a solidez da mentalidade conservadora. Nos mais extremos momentos de conflitos de classes de nossa sociedade, os desfechos, destas situações antagonistas, guardadas as devidas alterações temporais das camadas da história, penderam sempre para o autoritarismo, violência, domínio e controle, favorecendo os interesses do Capital em detrimento dos problemas sociais. Acho que as massas reagem e depois adormecem sob a tutela das autoridades.
Ainda hoje, em um eventual acirramento de conflitos, acredito que a “solução” virá pela direita, em um novo golpe, uma nova ditadura, que reenquadre o país, neste modo de pensar, em seu ”devido” papel, o de colonizado.
Nossa atual gerência política, com suas eficientes políticas sociais e política de estruturação do Estado para intervenção social avançou e mostrou, em certos aspectos, que existem outras alternativas, porém, hoje, vem servindo de anteparo aos conflitos oriundos das contradições do sistema Capitalista no Brasil. Acho que suas margens de manobra estão se esgotando e não estou muito otimista com perspectivas de nossa “Ordem e Progresso”.
Continuo apoiando o PT (governo) nesta difícil empreitada de resistência, hoje, não vejo outra opção, mas como “o futuro é uma caixinha de surpresas”, “a esperança é a ultima que morre”.
Saudações aos brilhantes historiadores responsáveis por esta reflexão. “Ditadura é isso aí”.
Postar um comentário