Devendo huma vez acabar com o antigo e
impolitico uso das urupembas nas portas, e janelas nas ruas ainda as principais
desta Cidade, o que só podia admitido nos principios rusticos da primeira
fundação... serem tiradas as ditas urupembas, e substituirem com algum outro
reparo que quizerem como gelozias ou vidraças...
Deus guarde a Vossas Senhorias por muitos annos. Palacio do Governo da Parahyba. 26 de Outubro de 1825
Deus guarde a Vossas Senhorias por muitos annos. Palacio do Governo da Parahyba. 26 de Outubro de 1825
Recentemente tivemos a ventura de topar com uns documentos tidos
por perdidos da Câmara de Vereadores da antiga cidade da Parahyba. Trata-se de
um esparso conjunto de papeis que englobava de maneira incompleta e descontínua
os anos de 1814-15, 1824-28 e 1910-12. Sobraram do muito que se perdeu em
muitas décadas pelos motivos mais diversos. Não se trata de um enorme volume,
mas acaba se transformando num acervo bastante significativo, dada a
possibilidade que permite ver aspectos escassamente conhecidos ou
praticamente desconhecidos da vida urbana nesses momentos. Os pesquisadores
encontrarão muito do que se fartar nos próximos tempos.
A diversidade de assuntos é muito rica e damos aqui uma ideia
geral do que se encontra nesses velhos papeis: regulamentação ou proibição de
currais de pescaria por atrapalharem a navegação do rio; briga com o Vice
Presidente da Província pela nomeação do Médico da Cidade logo após à derrota
da Confederação do Equador; falta de Professores de Primeiras Letras; problemas
de recuperação de estradas e pontes em Mandacaru e Gramame, com decorrentes
dificuldades para o abastecimento de farinha para a Tropa Paga e para o Mercado
Público devido à importância estratégica da Ponte de Gramame; notícias diversas
da Corte Imperial, como nascimento do Príncipe Herdeiro, aniversário do
Imperador, falecimento da Imperatriz entre outras; atos de política
internacional como notificação e júbilo pelo reconhecimento da Independência do
Império do Brazil pelo Reino de Portugal, Tratados Internacionais de Amizade, Navegação
e Comércio entre
o Império do Brazil e os Reinos da Prússia, a Liga Hanseática e o Império da
Áustria; ação de ladrões em Gramame; Festejos da Padroeira Nossa Senhora das
Neves; briga entre um Padre e umas "molheres apelidadas as Venancias" (quem seriam essas Senhoras? Daria um ótimo nome para uma banda de Rock local) por acesso à água numa cacimba no lugar das
Convertidas (atual Maciel Pinheiro); providências para conserto de fontes e
bicas de água. Resumindo: há uma pletora de fragmentos da vida urbana da velha
Parahyba que serve como uma pequena cápsula do tempo dos tempos d’antanho.
Um dos documentos mais curiosos que encontramos, e que causou
certo espanto de quem o viu, é de uma Vereação de 26 de Outubro de 1825, no
qual o Presidente da Província Alexandre Francisco de Seixas Machado fala do
uso das urupembas nas portas e janelas das casas da Cidade e determina sua
remoção em breve tempo. O que seriam as tais urupembas e por que que as mesmas
eram vistas, no começo do século XIX, como algo impolítico, ou seja, marca de atraso e
de costumes rústicos que deveriam ser combatidos?
As urupembas seriam uma espécie de treliças colocadas nas janelas e portas, que teriam finalidade de sombrear o ambiente interno mantendo a sua ventilação, bem como isolando o espaço interno das casas do olhar indiscreto das ruas. Supostamente, seria possível ver o que se passava nas ruas, sem ser
visto. Isso permitiria o recato necessário às mulheres naquela sociedade
distante de nós quase dois séculos, mas cujo uso já era considerado impolítico
por um Presidente de Província. Como entender essa situação aparentemente
banal?
Bom, não se tratava apenas de uma questão estética como pura
forma, mas de como uma determinada forma de sociabilidade se manifestava
através de uma simples estrutura de janela das casas. O "ver sem ser
visto" poderia ser fonte de mexericos (hoje modernizados com o nome brega
de fake news). Por outro lado, o historiador Paulo César Garcez Marins, no seu
interessantíssimo livro "Através da Rótula: Sociedade e Arquitetura Urbana
no Brasil, séculos XVII a XX", mostra que as treliças de madeira que
pareciam isolar o interior das casas do ambiente externo, também eram brechas
de passagem para atos não tão adequados para a moralidade da época. Inclusive, acrescentamos
aqui que o nome gelosia aplicado a algumas dessas janelas, vem da palavra
italiana gelosia, que advém de uma palavra árabe de mesmo significado, que em
português é ciúme. A gelosia seria a garantia de maridos ciumentos. Seria?
Curiosamente, a mesma palavra gelosia é usada no francês
jaloux e no inglês jealous. Está numa magnífica música de John Lennon,
"Jealous Guy" (em nordestinês paraibano algo como "caba
ciumento").
E a palavra urupemba ou urupema? De onde viria esse nome? Bom,
é tupi e significa uma peneira feita de talas de madeira para peneirar
mandioca. Como lembra uma treliça, temos o termo urupemba usado para essas
treliças que ficavam nas janelas e que a autoridade da velha Parahyba viu como
impolíticas.
Do reduzido espaço de uma janela pudemos nesse jogo lúdico juntar
os antigos moradores da Parahyba, a arquitetura mediterrânea e árabe, a palavra
ciúme em italiano, francês e inglês, o grande caba ciumento John Lennon e uma
estrutura treliçada que ganhou um nome tupi devido a uma peneira de farinha.
Tá misturado aqui arquitetura, economia, moralidade pública e
privada, música pop, a velha Parahyba e por aí vai. Sem besteira de
"rótulos" de “nova história de sei-lá-o-que”, “sei-lá-mais-que",
talvez chamar de História já seja mais que suficiente, pois, como diria o velho
Marc Bloch “é o tudo pronto que espalha gelo e tédio”. Através das rótulas das
Histórias e sem se ficar mesmerizados nos rótulos, muita coisa passa ou pode
passar de um lado para o outro, sejam as práticas licenciosas esperadas das recatadas domésticas, sejam algumas coisas intragáveis apresentadas como a mais pura ciência.