terça-feira, 2 de julho de 2019

Percebendo os calcetas: um aprendizado sobre a observação histórica.


O clássico texto Apologia da História, de Marc Bloch, em seu capítulo 2, tece riquíssimas considerações sobre a observação histórica, que se remete ao que os historiadores conseguem ver e como eles conseguem perceber aquilo que veem. Com finas análises de um consumado mestre, Bloch fornece lições para todas as gerações daqueles que se dedicam ao labor da História.

Os calcetas. Imagem do artista francês Jean-Baptiste Debret
retratando o Brasil do século XIX. 


Entre outras questões, um dos pontos centrais da argumentação de Bloch é que o olhar do historiador deve estar sempre aguçado para perceber detalhes aparentemente miúdos e que as respostas que um historiador obtém das suas pesquisas depende fundamentalmente das questões que ele levanta; sem questionário, sem indagações, sem problematizações, como mesmo diz Bloch “é o tudo pronto que espalha gelo e tédio”. Conclui esse capítulo nos lembrando que a pesquisa histórica não está despida das surpresas, da possibilidade de se defrontar com o inesperado.

Em Agosto de 2018, coube-nos a ventura de topar com um conjunto de documentos aparentemente perdidos da Câmara Municipal da Cidade da Parahyba (que hoje englobaria grosso modo os Municípios de João Pessoa, Cabedelo, Lucena, Conde, Bayeux e Santa Rita), referentes à pequenos períodos de inícios do século XIX e alguma coisa do início do XX, uma pequena parcela do que deve ter existido em outros momentos. Daí desenrolou-se um projeto, que se encontra em andamento, cujos resultados ainda deverão trazer algumas possibilidades bastante ricas em termos da história da Cidade.

Fazendo um arrolamento muito geral do que foi entrevisto até o momento, temos documentos sobre Escolas de Primeiras Letras, obras públicas, abastecimento de gêneros, questões de política local, relações com o governo Imperial, saúde pública, abastecimento de água, festividades cívicas e religiosas, enfim, uma grande diversidade de temas que nos permite chegar um pouco mais próximos do cotidiano da velha cidade.


O Presidente da Província informa não haver
calcetas disponíveis para as obras de limpeza
das fontes públicas [27/10/1826]
Preocupado de maneira pessoal com questões ligadas ao fornecimento de água, bicas, chafarizes, cacimbas, pus-me a observar com mais atenção documentos que remetiam à essas questões. Num deles, localizado há alguns meses, datado de 27 de Outubro de 1826, o Presidente da Província, Alexandre Francisco de Seixas Machado, responde negativamente à uma solicitação da Câmara acerca do fornecimento de seis calcetas para a limpeza das fontes públicas, que estavam sofrendo de encalhes de areias, devido a recentes enxurradas na Cidade. Focado na questão das fontes e do encalhe das areias, deixei passar em brancas nuvens o termo calcetas e a vida seguiu seu rumo. Supunha ser algo ligado à calçamento, mas não aprofundei o significado da intrigante palavra.

Passado certo tempo, um aspecto do todo da documentação me dava alguma inquietação, que diz respeito à quase invisibilidade do mundo do trabalho e das pessoas dos trabalhadores, muito embora um historiador treinado no ofício saiba que ele e eles está e estão lá. No que foi visto até o momento, só um documento fala explicitamente de escravos, outro menciona certas atividades de pesca, olaria e plantio de capim na baixada do Varadouro, outro, ainda, cita a existência de teares na cidade, mas tudo é muito escasso e fugidio como são certas histórias que decorrem quase à sombra, quase invisíveis no “grande palco da História”; o trabalho e os trabalhadores normalmente habitam esses desvãos.

  Dessa inquietação, nasceu uma indagação sobre onde poderia haver pistas fugazes desses trabalhadores e seus trabalhos no meio daqueles velhos papeis. Foi quando o documento das fontes e das areias se transformou no “documento dos calcetas”. A mudança do foco do olhar e a pergunta que não havia sido feita, trouxeram outra história tão rica à tona, a história do uso do trabalho compulsório para apenados durante o período colonial e imperial. A rápida lembrança de uma imagem, já vista tempos antes, de Jean-Baptiste Debret, que falava de calcetas, foi o estalo sobre o que estava lá – à vista – e ainda não tinha sido visto.

Jean-Baptiste Debret registrou essa imagem de calceteiros [calcetas] em ação no  Rio de Janeiro, por volta de 1835.


A palavra ganhou imagens, ganhou história, à qual se juntaram Debret e minha aluna Aldenize, que contribuiu com uma interessante referência sobre uma “revolta dos calcetas”, ocorrida nos Açores (Portugal) em 1835, na qual esses apenados acabaram duramente reprimidos pelas forças locais. Essa é uma daquelas histórias que ganham vulto à medida em que são esmiuçadas e que novos olhares e novas perguntas são postas. 

No documento em tela, além da problemática da água na cidade, estava contada uma história do trabalho e das obras públicas em outros tempos na Parahyba de antanho. Atrás da simples palavra calcetas estava toda uma hierarquia social misturada a uma segregação racial tão inerente a séculos de nossa história. Lá estavam essas pessoas muitas vezes anônimas e escondidas nas sombras voltando ao proscênio da história; aqueles que executavam com seus braços os afazeres que mantinham a cidade em movimento nos tempos de lá e nos de cá.

Após tantas leituras e aulas ministradas com o texto sempre novo do velho Bloch, eis um professor de História aprendendo uma lição de história, o que acaba sendo uma fascinante possibilidade de um conhecimento que tem a marca de um contínuo fazer, e esse fazer – é bom que se diga – é um trabalho.