O clássico texto Apologia da História, de Marc Bloch, em seu
capítulo 2, tece riquíssimas considerações sobre a observação histórica, que se
remete ao que os historiadores conseguem ver e como eles conseguem perceber
aquilo que veem. Com finas análises de um consumado mestre, Bloch fornece
lições para todas as gerações daqueles que se dedicam ao labor da História.
Os calcetas. Imagem do artista francês Jean-Baptiste Debret retratando o Brasil do século XIX. |
Entre outras questões, um dos pontos centrais da argumentação
de Bloch é que o olhar do historiador deve estar sempre aguçado para perceber
detalhes aparentemente miúdos e que as respostas que um historiador obtém das
suas pesquisas depende fundamentalmente das questões que ele levanta; sem
questionário, sem indagações, sem problematizações, como mesmo diz Bloch “é o tudo pronto que espalha gelo e tédio”.
Conclui esse capítulo nos lembrando que a pesquisa histórica não está despida
das surpresas, da possibilidade de se defrontar com o inesperado.
Em Agosto de 2018, coube-nos a ventura de topar com um
conjunto de documentos aparentemente perdidos da Câmara Municipal da Cidade da
Parahyba (que hoje englobaria grosso modo os Municípios de João Pessoa,
Cabedelo, Lucena, Conde, Bayeux e Santa Rita), referentes à pequenos períodos
de inícios do século XIX e alguma coisa do início do XX, uma pequena parcela do
que deve ter existido em outros momentos. Daí desenrolou-se um projeto, que se
encontra em andamento, cujos resultados ainda deverão trazer algumas
possibilidades bastante ricas em termos da história da Cidade.
Fazendo um arrolamento muito geral do que foi entrevisto até
o momento, temos documentos sobre Escolas de Primeiras Letras, obras públicas,
abastecimento de gêneros, questões de política local, relações com o governo
Imperial, saúde pública, abastecimento de água, festividades cívicas e
religiosas, enfim, uma grande diversidade de temas que nos permite chegar um
pouco mais próximos do cotidiano da velha cidade.
O Presidente da Província informa não haver calcetas disponíveis para as obras de limpeza das fontes públicas [27/10/1826] |
Preocupado de maneira pessoal com questões ligadas ao
fornecimento de água, bicas, chafarizes, cacimbas, pus-me a observar com mais atenção
documentos que remetiam à essas questões. Num deles, localizado há alguns
meses, datado de 27 de Outubro de 1826, o Presidente da Província, Alexandre
Francisco de Seixas Machado, responde negativamente à uma solicitação da Câmara
acerca do fornecimento de seis calcetas
para a limpeza das fontes públicas, que estavam sofrendo de encalhes de areias,
devido a recentes enxurradas na Cidade. Focado na questão das fontes e do
encalhe das areias, deixei passar em brancas nuvens o termo calcetas e a vida seguiu seu rumo.
Supunha ser algo ligado à calçamento, mas não aprofundei o significado da
intrigante palavra.
Passado certo tempo, um aspecto do todo da documentação me
dava alguma inquietação, que diz respeito à quase invisibilidade do mundo do
trabalho e das pessoas dos trabalhadores, muito embora um historiador treinado
no ofício saiba que ele e eles está e estão lá. No que foi visto até o momento,
só um documento fala explicitamente de escravos, outro menciona certas
atividades de pesca, olaria e plantio de capim na baixada do Varadouro, outro,
ainda, cita a existência de teares na cidade, mas tudo é muito escasso e
fugidio como são certas histórias que decorrem quase à sombra, quase invisíveis
no “grande palco da História”; o trabalho e os trabalhadores normalmente
habitam esses desvãos.
Dessa inquietação, nasceu uma indagação sobre
onde poderia haver pistas fugazes desses trabalhadores e seus trabalhos no meio
daqueles velhos papeis. Foi quando o documento das fontes e das areias se
transformou no “documento dos calcetas”. A mudança do foco do olhar e a
pergunta que não havia sido feita, trouxeram outra história tão rica à tona, a
história do uso do trabalho compulsório para apenados durante o período
colonial e imperial. A rápida lembrança de uma imagem, já vista tempos antes,
de Jean-Baptiste Debret, que falava de calcetas, foi o estalo sobre o que
estava lá – à vista – e ainda não tinha sido visto.
Jean-Baptiste Debret registrou essa imagem de calceteiros [calcetas] em ação no Rio de Janeiro, por volta de 1835. |
A palavra ganhou imagens, ganhou história, à qual se juntaram
Debret e minha aluna Aldenize, que contribuiu com uma interessante referência
sobre uma “revolta dos calcetas”, ocorrida nos Açores (Portugal) em 1835, na
qual esses apenados acabaram duramente reprimidos pelas forças locais. Essa é
uma daquelas histórias que ganham vulto à medida em que são esmiuçadas e que
novos olhares e novas perguntas são postas.
No documento em tela, além da problemática da água na cidade,
estava contada uma história do trabalho e das obras públicas em outros tempos
na Parahyba de antanho. Atrás da simples palavra calcetas estava toda uma hierarquia social misturada a uma
segregação racial tão inerente a séculos de nossa história. Lá estavam essas
pessoas muitas vezes anônimas e escondidas nas sombras voltando ao proscênio da
história; aqueles que executavam com seus braços os afazeres que mantinham a
cidade em movimento nos tempos de lá e nos de cá.
Após tantas leituras e aulas ministradas com o texto sempre
novo do velho Bloch, eis um professor de História aprendendo uma lição de
história, o que acaba sendo uma fascinante possibilidade de um conhecimento que
tem a marca de um contínuo fazer, e esse fazer – é bom que se diga – é um
trabalho.
5 comentários:
Belo trabalho, digno de um historiador. A você todo o meu respeito e admiração.
Belos questionamentos em uma narrativa fantástica.
Prezado Unknown, bom dia.
Obrigado pelo comentário.
Abraço.
Olá Rosalie, bom dia.
Fico contente que tenhas gostado.
Abração.
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