Rumo à praia, mas, no rumo certo?
Ângelo Emílio da Silva Pessoa (DH-UFPB)
Pode parecer surpreendente, mas o hábito de priorizar as praias como lugares de moradia salubres e com qualidade de vida não é tão antigo quanto possa parecer. Num instigante trabalho sobre a praia no imaginário ocidental, o historiador Alain Corbin aponta que até meados do século XVIII predominava sobre a beira-mar uma percepção de lugar insalubre, nocivo, cheio de perigos, de malefícios, de decomposição, de assombrações. No final desse mesmo século, inicialmente na Europa, mas se expandindo no ocidente, essa visão sobre a praia começou a se modificar e novas sensibilidades começaram a emergir nesse sentido, atribuindo aos ares marinhos uma ideia de saúde, de renovação (CORBIN, 1989).
Isso não implica que não houvesse populações residentes às beiras de praias, rios e lagos, essas populações litorâneas e ribeirinhas se constituíam durante séculos nos segmentos sociais mais empobrecidos, vistos das maneiras mais desabonadoras pelos detentores do poder e pelos segmentos mais abastados. No caso do Brasil, um historiador assim afirma:
Durante toda a existência desses grupos socialmente distintos, principalmente a partir da formação do estado nacional no século XIX, o senso comum formulou alguns estereótipos um tanto quanto evasivos, atribuindo-lhes qualificações depreciativas a respeito das suas formas de sobrevivência [...]. Ancorados no discurso virtualmente disciplinador e pautados nas regras existenciais de universos diferentes, criaram imagens de sujeitos, trabalhadores – homens e mulheres – sem nenhum tipo de ambição, irremediavelmente condicionados a um estilo de vida “desregrado”, refratário à labuta diária, que priorizam bebedeiras nos bares, a disputa nos jogos de azar ou que passam a maior parte do tempo espreguiçados nas redes de balanço, sob a sombra dos coqueirais, historicamente contaminados pelos ventos da “maresia”; ou melhor, da letargia. (CASTELLUCCI JR. 2016. p. 31/32).
Essa visão é
corroborada por um destacado geógrafo:
Observa-se na zona
costeira do Brasil, no fim do período colonial, a existência de cidades
portuárias relativamente isoladas que se constituem em centros de uma produção
local ou em pontos terminais de sistemas produtivos específicos do interior.
[...] De resto, vastas extensões do litoral permanecem isoladas ou pouco
ocupadas. Estas serão tradicionalmente áreas de refúgio de tribos indígenas e
de escravos fugidos, que acabam por instalar pequenas comunidades envoltas em
gêneros de vida rudimentares, voltados para o autoconsumo. Estas vão ser as
origens das populações litorâneas “tradicionais” ainda hoje presentes em várias porções da costa brasileira (MORAES. 1999, p.
34).
Dessa forma, tratados como párias, como
indolentes, essas populações que viviam do seu pescado, da mariscagem e de
todas as formas de labuta vistas como degradantes, estavam longe de ser
reconhecidos como sujeitos de seus próprios destinos, especialmente numa ordem
escravista, sendo sobre os mesmos estabelecidos estigmas os mais diversos, a
suspeição constante e os “projetos de civilização” que os queriam reduzir à
condição de mão-de-obra barata e disciplinada. Num Ensaio Econômico em 1816, o então dublê de Bispo e Economista de
Olinda assim propunha o disciplinamento das populações indígenas e parte das
africanas:
§ XII – O índio selvagem entre a raça dos homens parece
anfíbio, parece feito para as águas (...): é naturalmente inclinado à pesca,
por necessidade e por gôsto. Esta é a sua paixão dominante e, por conseqüência,
a mola real do seu movimento: é por esta parte que se deve fazer trabalhar a
sua máquina, em benefício comum dêle e de tôda a sociedade.(...)
§ XIV – Êste arrebatamento de gosto o irá insensìvelmente
atraindo e convidando a viver e comunicar-se com os homens daquela profissão
[fabricante de redes de pesca], que para êle se representa extraordinária. Esta
comunicação lhe fará ver a diferença do homem selvagem e a do civilizado; pouco
a pouco se irá domesticando, e conhecendo que o homem é capaz de mais e mais
comodidades. (...).
§ XXII – Os prêtos, aquêles braços feitos mais para um
trabalho contínuo nos meios dos ardores do Sol do que para os frios das águas,
e que até agora serviam na marinhagem como perdidos para a lavoura, irão
aumentar os produtos da agricultura (...).
§ XXII – A agricultura, a pescaria, a marinha, dando as mãos entre si, elevarão Portugal a uma fôrça e a uma riqueza imensas. A pescaria e a marinha, ainda que nenhum lucro dessem a Portugal, se deveriam, contudo, promover por todos os meios possíveis, só porque são o meio de aproveitar tantos milhares de braços, que, aliás, são perdidos. (COUTINHO, 1966. p. 92-100).
Assim,
vistos por um prisma constantemente desabonador, não custou que essas
populações tivessem sido, via de regra, desconsideradas em relação às suas
expectativas e pontos de vista quando dos grandes processos e planos de
expansão urbana para áreas litorâneas, no momento em que as cidades brasileiras
começaram a migrar para as praias. Desalojadas de seus espaços tradicionais, restou-lhes
buscar áreas com condições ainda mais precárias de moradia e trabalho. Como
atesta o mesmo geógrafo citado acima:
Tais populações sobrantes vão alojar-se no espaço urbano litorâneo exatamente nas áreas deixadas sem uso pelas outras atividades, geralmente áreas de grande vulnerabilidade e/ou proteção ambiental. No primeiro caso, pode-se lembrar as encostas íngremes e as zonas sujeitas a inundações, no segundo, as áreas de defesa de mananciais ou os manguezais. [...]. Enfim, estes amplos e crescentes segmentos marginalizados, continuamente alimentados pelo fluxo migratório descrito, vão ser responsáveis por outra das formas predominantes de manifestação da urbanização da zona costeira no Brasil. Trata-se do processo de favelização que, ao lado (nos dois sentidos) da segunda residência, vai compor a paisagem das periferias das grandes aglomerações e capitais litorâneas. Geralmente, as casas de veraneio ocupando os melhores sítios, e as favelas predominando nas áreas mais impróprias à ocupação. (MORAES, 1999. p. 40).
Antes de avançarmos, cabe uma consideração:
se os primeiros núcleos urbanos do Brasil se situavam em sua maioria nas áreas
litorâneas, isso não significava que fossem cidades exatamente “praianas”. Os
grupos sociais mais abastados buscavam os altos de colinas, os terrenos mais
elevados como forma de evitar a beira-mar ou beira-rio. Conhecendo Rio de
Janeiro, Salvador, Olinda/Recife, que cresceram às vistas do mar, seus núcleos
urbanos mais antigos buscaram esse tipo de terreno mais elevado, deixando para
as áreas especificamente praianas ou ribeirinhas as atividades portuárias e
pesqueiras, habitadas geralmente pelas populações “marginais” daquela
sociedade. Portanto, a busca da beira-mar acabou sendo uma tendência bem mais
recente. Com a mudança das sensibilidades em relação às praias – como apontado
por Corbin – apenas nos finais do século XIX e começo do XX é que essas cidades
efetivamente migraram para as mesmas, como mostram os elegantes bairros de
Botafogo e Copacabana no Rio de Janeiro, ou Boa Viagem, em Recife.
A velha cidade da Paraíba (hoje dividida
entre os Municípios de João Pessoa, Cabedelo, Lucena, Conde, Bayeux e Santa
Rita), tinha suas atividades produtivas agrícolas de maior porte situadas
principalmente na várzea do Paraíba (onde remanescem testemunhos arquitetônicos
de antigos engenhos e capelas em meio às terras de usinas), a área portuária e
propriamente urbana nos atuais Centro e Varadouro de João Pessoa e pequenos
núcleos de habitação esparsa em regiões de sítios de produção de gêneros
abastecimento local (farinha de mandioca, criação de animais de pequeno porte
etc.) e atividades pesqueiras em áreas que hoje estão englobadas por bairros
mais recentes dessas cidades. A existência de capelas isoladas nesses
territórios e esparsos documentos escritos (lamentando a situação deplorável da
maior parte de nossos acervos) atesta essa “presença invisível”, como podemos
ver numa direção Sul-Norte em relação à comunidade de pescadores da Penha (com
sua Capela de Nossa Senhora da Penha datada de 1753); a antiga e hoje
desaparecida Capela do Coração de Jesus, no Cabo Branco; a Igreja de Nossa
Senhora dos Navegantes, tombada no ano de 1938 pelo IPHAN (Processo 041-T-38),
cujos remanescentes sumiram frente à voragem do crescimento urbano; a Capela de
Santo Antônio, situada em Tambaú, hoje profundamente alterada em relação ao seu
traçado original. Outras capelas, mais ao Norte, se situam no atual Município
de Cabedelo, emancipado de João Pessoa em meados do século XX.
Como se vê, por mais apagados que esses
rastros tenham sido, ainda restam testemunhos de sua existência efetiva, como
veremos a partir do relato de um missionário que por aqui esteve em 1839, e
seguiu de Tambaú para a área urbana da antiga Paraíba, por uma rota que sugere
algo próximo do atual traçado da avenida Epitácio Pessoa:
Por volta das 4 horas da tarde contornamos o Cabo
Branco e, portanto, tínhamos Tambaiú, o nosso ponto terminal, a cêrca de uma
légua à nossa frente. Saltando nesse lugar, que fica apenas a seis milhas da
Paraíba, evitámos um percurso de trinta ou quarenta milhas, em tôrno da ponta
do Cabedelo e subindo o sinuoso [rio] Paraíba. Desembarcámos logo e, ao indagar
sobre a possibilidade de obter um animal, informaram-nos que aí se conseguiria
com facilidade até vinte, se preciso fôsse. Todavia, parece que em tôda
povoação só havia um e mesmo assim nem ele nem seu dono se achavam na vila.
[...] Logo depois veio sentar-se ao nosso lado, tomado de curiosidade, talvez,
um rapazola de quatorze ou dezesseis anos [...] Êsse garoto nos disse depois,
que, ao deixar a escola, voltara a atenção para a pescaria. Era o mais moço de
diversos irmãos [...]. Ninguém da família sabia ler: contudo, a julgar pela
casa que ocupavam na praia, parece que estavam em situação igual à de seus
vizinhos. [...] Resolvidos a caminhar até a cidade conosco, nossos companheiros
de viagem se ofereceram para transportar a bagagem, dividindo entre êles o
preço que para isso lhes pagaríamos. [...] a-pesar-de viajarmos por uma estrada
real, fomos diversas vêzes obrigados a vadear cursos d’água. Logo que o caminho
deixou de lado a areia movediça da praia e enveredou pela floresta a dentro,
tornou-se muito agradável, conquanto não passasse de uma tortuosa vereda. (KIDDER,
1972. p. 114/115).
Pelas palavras do
missionário, havia ali uma comunidade de pescadores, no interessante diálogo
com o garoto, que não reproduzimos para não alongar a citação, o mesmo informou
a Kidder que havia freqüentado a Escola no Palácio, mas que nada havia aprendido
ali e não sabia ler nem escrever. Esse parece ser um problema que deita suas raízes
nas noites dos tempos...
Um século depois,
o grande historiador e memorialista Coriolano de Medeiros, não deixou de
apontar a região que se dirigia a Tambaú com o mesmo quadro que presenciara em
sua infância e juventude, em finais do século XIX, ressalvada aqui a sua visão
particular sobre os moradores daquelas redondezas:
Cruz do Peixe ia terminar nas matas que ensombravam a estrada de Tambaú, verdadeira floresta, coito de pretos fugidos e malfeitores que, vez por outra, assaltavam os transeuntes, arrebatando-lhes quanto conduziam. E a floresta tomava grandes proporções, especialmente antes do Sobradinho, na Cruz do Caboclo, onde se bifurcava um caminho para o Cabo Branco. Segundo a tradição, mataram ali um caboclo foragido da Penha, após o assassinato que praticara para roubar o dono daquela propriedade. Assim, por longos anos, quem passava no local via, à margem do caminho, uma cruz de madeira indicando a sepultura do malfeitor. (MEDEIROS, 1994. p. 26).
Um tanto diferentemente de Olinda,
Salvador ou Rio de Janeiro, a Paraíba tivera seu primeiro núcleo urbano
bastante distanciado da beira-mar e próximo ao rio Sanhauá, afluente do
Paraíba. O pesquisador Magno Erasto de Araújo, em sua tese sobre a presença de
rocha e água potável para a escolha do sítio urbano que hoje corresponde ao
antigo Centro e Varadouro de João Pessoa, não deixou de apontar que, entre
diversos fatores, os primeiros colonizadores estiveram atentos à presença de
rochas para a construção e de água potável para consumo da população. Desta
forma, após uma série de prospecções, esse sítio acabou sendo considerado o
mais viável para a implantação da cidade (ARAÚJO, 2012). Dessa forma, o núcleo
urbano original mais distanciado da praia do que no caso de outros municípios
litorâneos do Brasil e fez com que a cidade só se direcionasse para Leste
séculos após o seu estabelecimento inicial.
Isso não significava a inexistência de
ocupações humanas e de atividades econômicas nessas regiões praianas, conforme
já visto, mas sua história é cercada de lacunas e as fontes são mínimas. Mesmo
em relação à população trabalhadora habitante na antiga região central da
cidade, as informações são esparsas e fragmentárias, conforme constatou Regina
Gonçalves (GONÇALVES, 2016). Em relação a outras áreas, especialmente a
litorânea, uns poucos documentos da Câmara da Paraíba, datados das primeiras
décadas do século XIX, nos informam sobre a presença de pontes sofrendo reparos
em Gramame, Mandacaru e Tambaú, por onde circulavam pessoas e mercadorias, como
farinhas, pescados outros gêneros que abasteciam o mercado urbano. Um singelo Mandado
de Despesa Camarário, de 30 de Dezembro de 1814, determinou o pagamento de
30$840 (Trinta mil, oitocentos e quarenta Réis) ao Almotacé Antônio José
Batista pelos reparos feitos na Ponte de Tambaú naquele mesmo ano (Livro de
Mandados de Despesas da Câmara da Paraíba – 1814-1819). Já outro documento,
esse um Oficio da Câmara, datado de 18/10/1828, designa Capitão do Corpo de
Ordenanças da Cidade, no Distrito que vai de Tambiá, Tambaú até Cabedelo o
antigo Alferes Luís d’Oliveira Diniz. Como se vê, a população quase invisível
dessa região mostra um quadro bem mais complexo do que o antigo e um tanto redutor
“Cidade Alta-Cidade Baixa”, que tanto tem marcado as análises sobre a vida da
velha Paraíba, não sendo de toda a forma errado, mas reduzindo a escala da
observação ao restrito núcleo urbano.
A “corrida para o mar” que muitas cidades
brasileiras iniciaram entre finais do século XIX e começo do XX, impulsionadas
pelas novas concepções em torno de zonas praianas tem no Rio de Janeiro um de
seus exemplos mais ilustrativos, tal como podemos ver em relação à região de
Copacabana, que fora um distante arrabalde até finais do século XIX,
transformando-se rapidamente num bairro densamente povoado e prestigiado, sendo
considerada a “Princesinha do Mar” já em meados do XX, sendo hoje um bairro de
alta densidade populacional e uma pletora de problemas urbanos os mais diversos.
Voltando ao nosso caso da Capital
paraibana, até o começo do século XX a região praiana estava restrita às
moradias de pescadores e às primeiras residências de veranistas. No Jornal O
Norte de 24/12/1908 encontramos a informação sobre missas natalinas que seria
realizadas em Tambaú e em Praia Formosa. Nesse mesmo ano o jornal informa os
horários dos bondes que ligavam Cruz do Peixe à praia de Tambaú. Conforme
percebeu Mário de Andrade, que esteve aqui no início de 1929, foi possível presenciar
um animado coco, na praia de Tambaú:
Tomei banho, me vesti, etc. fui jantar, voltei pro quarto arear os dentes, ver no espelho se podia sair para um passeinho até a praia de Tambaú [...] Passeei e foi um passeio surpreendente na Lua cheia. Logo de entrada, pra me indicar a possibilidade de um bom trabalho musical por aqui, topei com os sons dum coco. O que é, o que não é: gente predestinada pra dançar e cantar, isso não tem dúvida. [...]. Mas o ganzá era batido por um piazote que não teria 6 anos, coisa admirável. Que precocidade rítmica, puxa! O piá cansou, pediu pra uma pequena fazer a parte dele. Essa teria 8 anos certos mas era uma virtuose no ganzá. Palavra que inda não vi, mesmo nas nossas habilíssimas orquestrinhas maxixeiras do Rio, quem excedesse a paraibaninha na firmeza, flexibilidade e variedade de mover o ganzá. Custei sair dali. (ANDRADE, 2021. p. 240).
Quase uma década depois, em 30 de Março de
1938, a Missão de Pesquisas Folclóricas, idealizada por Mário de Andrade e
dirigida por Luiz Saia, chegou a fazer a gravação sonora e a filmar um coco na
mesma praia de Tambaú. Muitos poderiam ser as mesmas pessoas que o escritor
paulista havia visto em sua passagem, anos antes.
Seja como for, partir da segunda década do
século XX, a antiga estrada de Tambaú começou a receber aportes mais
consistentes de estrutura viária, dando origem à Avenida Epitácio Pessoa, que
alongou suas obras até os anos 1950, tendo atraído paulatinamente novos bairros
e construções de porte, como clubes esportivos, hotéis e outras, que
reconfiguraram toda a orla litorânea da cidade em poucas décadas. Estudos como
os de Dieb e Maia sobre a produção do espaço em torno da Epitácio Pessoa (MARTINS
e MAIA, 2015) ou de Ressa sobre os loteamentos entre as décadas de 1910 e 1950 (RESSA,
2012) e de Vasconcelos Filho sobre a produção do espaço urbano no litoral Norte
de João Pessoa (VASCONCELOS FILHO, 2003) mostram como essa ocupação foi se
estabelecendo e como em diversos momentos algumas contradições acabaram por
aflorar ao longo dos mesmos processos.
Na primeira metade da década de 70 a política nacional de expansão
econômica veio dar maior impulso ao crescimento da cidade, sobretudo em suas
áreas mais valorizadas. Os financiamentos do SFH voltaram-se principalmente
para a construção de unidades habitacionais isoladas de alto padrão construtivo
(288% de incremento em relação à década anterior), propiciando um relativo
adensamento das áreas situadas nos bairros nobres da área central, na faixa de
ligação do Centro com a praia e em Tambaú. A grande concentração de construções
neste último bairro veio reforçar a tendência, que já se estava verificando, da
orla marítima assumir uma ocupação de uso permanente, definindo um novo eixo de
expansão, que se estenderia gradativamente em direção ao sul: dos bairros Cabo
Branco e Tambaú para Manaíra e Bessa. (LAVIERI e LAVIERI, 1999. p. 45/46).
Conforme vimos anteriormente em Moraes,
esses processos implicaram em diretrizes que estavam associadas a projetos nos
quais a especulação imobiliária se tornou o cerne da lógica, desprezando os
impactos sociais e ambientais deles decorrentes. Antigas comunidades de
pescadores e outras populações praianas, radicadas desde tempos imemoriais
nessa região, foram desalojadas de seus espaços tradicionais de moradia e
trabalho, sendo “empurradas” para zonas de mangues e outras, sendo mais tarde
acusadas de ocupação irregular, quando essa foi causada pela voragem do mercado
imobiliário nas cidades em rápido e excludente crescimento. Em relação a João
Pessoa, Trajano Filho aponta que:
Um vertiginoso crescimento da área urbana – no período de uma década, entre 1970 e 1980, o espaço da capital cresceu a uma taxa superior a 100% – e na intensificação da estratificação social no espaço da cidade, [...] as camadas média e alta, contando também com financiamentos do BNH, se adensariam principalmente na orla marítima, num primeiro momento convertendo tradicionais espaços de veraneio em local de moradia fixa, em bairros como Cabo Branco, Tambaú e Manaíra, para em seguida avançar decididamente seguindo as praias rumo a Cabedelo, em empreendimentos em que se combinaram forte especulação imobiliária e valorização artificial de áreas da cidade desprovidas de outros atributos, além de sua proximidade ao mar, capazes de explicar a celeridade com que se deu a sua ocupação (TRAJANO FILHO, 2006. p. 13).
Um empreendimento hoteleiro de grande
porte, realizado entre finais dos anos 1960 e início dos 70, talvez tenha se
tornado a marca mais forte desse processo permeado de contradições (ROCHA,
TINEM e COTRIM, 2017). O Tropical Hotel Tambaú significou um marco
arquitetônico e turístico relevante, mas o seu processo de construção permeado
por uma visão tecnicista e uma gestão autoritária e o saldo socioambiental do
mesmo têm resultados ainda hoje questionáveis, tanto no que diz respeito à
perda de espaço das populações de pescadores locais quanto à repercussão sobre
a orla na praia de Manaíra (PIRES e MARINHO, 2020 e LEANDRO, s/d).
Essa lógica leva a que o espaço urbano se
torne paulatinamente mais segregado socialmente e fragilizado ambientalmente.
Os grandes projetos urbanos, em vez de levarem em conta uma ampla participação
popular, como preconizado por Rossana Honorato em “O projeto urbanístico e a
identidade da paisagem cultural” (HONORATO, 2015), se estribam na rápida
acumulação de capital e numa visão estreitamente mercadológica, na maioria das
vezes insensível aos eventuais danos socioambientais colaterais, como toda a
cidade pode acompanhar a lenta e progressiva degradação do vale do Rio
Jaguaribe, estudado por Dieb e Martins, que passaram a se tornar espaços de
intensa degradação justamente à medida que os bairros praianos começaram a
crescer no Leste e Norte da cidade (DIEB e MARTINS, 2017). Nesse processo, com
o crescimento urbano na região litorânea, além dos bairros habitados por
populações de perfil mais abastado, bairros populares se formaram no mesmo
processo no qual se combinaram de forma contraditória a de incorporação
demográfica como mão de obra e a exclusão social como direito à cidade (SILVA,
2021).
Esse pequeno resumo da situação poderia
ser enriquecido com outras importantes contribuições realizadas por arquitetos
e urbanistas, geógrafos, biólogos, ambientalistas, antropólogos e outros
estudiosos que se debruçam sobre o espaço urbano e seus fenômenos de
transformação e que buscam trazer aportes importantes para pensar sobre esses
fenômenos de grande complexidade e cujos resultados podem ser bastante
distintos das expectativas de benesses sociais e preservação ambiental. Em
momentos de inflexão e surgimento de propostas de grandes intervenções urbanas,
dialogar sobre todos os aspectos envolvidos e considerar fatores que extrapolem
o restrito âmbito da lucratividade imediata pode e deve ser o caminho mais prudente
para que se colham os melhores resultados e se evitem as eventuais catástrofes,
como não tem deixado de acontecer. A recente tragédia na cidade de São
Sebastião, no litoral paulista, com perda de vidas e bens, tem nos atualizado
lamentavelmente quanto a isso.
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