LADO B: "cena clássica" de enchente, com mortes e destruição material devidas às chuvas "acima do esperado". Imagem que parece se repetir à exaustão.
“A inundação tinha
coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de
água, que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos
confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente,
haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea... A
inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se gradualmente; as árvores
pequenas desapareciam; e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como
grandes moitas de arbustos”. José de Alencar. O Guarani. (1857).
“...muitos têm tido e têm
a opinião de que as coisas do mundo são governadas pela fortuna e por Deus, de
sorte que a prudência dos homens não pode corrigi-las, e mesmo não lhes traz remédio
algum. Por isso, poder-se-ia julgar que não deve alguém incomodar-se muito com
elas, mas deixar-se governar pela sorte... penso poder ser verdade que a
fortuna seja árbitra de metade de nossas ações, mas que, ainda assim, ela nos
deixe governar quase a outra metade. Comparo-a a um desses rios impetuosos que,
quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores, os edifícios,
arrastam os montes de terra de um lugar para o outro: tudo foge diante dele,
tudo cede ao seu ímpeto, sem poder obstar-lhe e, se bem que as coisas se passem
assim, não é menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer
reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correrão por um
canal e o seu ímpeto não será tão livre nem tão danoso”. Nicolau Maquiavel”.
O Príncipe. (1532).
Lá pela
7ª série, a Professora de Português do Pio X havia nos indicado a leitura de O Guarani, de José de Alencar. Não posso
negar que, à época, com uns 13 anos, achei a obra chata, impressão que acabou
se desfazendo com uma leitura posterior e mais adulta. Mesmo passado esse tempo
todo desde o final dos anos 70, nunca consegui esquecer a parte final do livro,
porque me parecia simplesmente inverossímil que pudesse acontecer uma enchente
daquele porte, que destruía tudo ao redor de suas margens e chegava à altura da
copa de grandes árvores.
Após
morar duas décadas no Estado de São Paulo, pude constatar a violência de chuvas
pesadas e grandes inundações, que me lembravam que o romance de Alencar, com
toda a licença literária, não havia exagerado nesse ponto. Também lembro que a
música Águas de Março, composta por
Tom Jobim na década de 1970, se referia a esse fenômeno recorrente de chuvas
ostensivas naquela região nesse mesmo período do ano.
A
questão é que já me cansou ouvir repetidamente a tal notícia, como um disco
riscado na velha vitrola com a agulha pulando: “choveu três vezes mais que o
esperado para tal período...” “...dez vezes mais que o esperado...”
“...duzentas vezes mais que o esperado...” e o diabo a quatro!!!. Ora bolas,
desde 1857, pelo menos, parece que quase sempre costuma chover mais que o
esperado e aquela região se torna um verdadeiro mar, com os conseqüentes
fenômenos decorrentes: inundação, desabamentos, destruição, mortes etc.
Resumindo:
a água e os aguaceiros já estavam lá há bastante tempo – pelo menos na época
das grandes chuvas, frequentemente ficam “acima do esperado” e, assim, podemos
constatar que o inesperado já é mais ou menos esperado – as vítimas humanas das
tragédias chegaram depois, sejam os indígenas da região, dizimados com o avanço
colonial, sejam as populações posteriores. E chegaram motivados por várias
situações, entre as quais não se deve descartar as menos idílicas, como a
cupidez imobiliária, a exclusão social, a imprevidência das autoridades que deveriam
estar preparadas para o tal “mais que o esperado”.
Mais
uma vez, em 2013, a cena se repete ad
nauseam. As televisões e jornais mostram cenas dantescas de mortes e
destruição, novas providências são prometidas e, em 2014 ou 2015, provavelmente
“choverá mais que o esperado”. Listagens de prováveis culpados: São Pedro? O
Presidente ou o Governador de plantão? Prefeitos? Políticos em geral? Nessa
barafunda, no outro extremo da Brasilândia, aguarda-se a chuva com promessas
aos céus!!!
Certamente,
aqui acolá encontramos tais (ir)responsabilidades e as mesmas precisam ser
apuradas e punidas com todo o rigor necessário. Mas a questão não começa nem
acaba aí. Mais que isso, há uma determinada formação social que convive de
forma “natural” com a imprevidência, com um certo quê de “distração”, que deixa
a sociedade (ou melhor, a parte mais vulnerável da mesma) entregue à própria
sorte, até que algo acontece – a “fatalidade” – e o choque da tragédia mobiliza
todos, até a próxima tragédia colocar a anterior no rol do esquecimento. Nosso
descaso para com as profundas diferenças sociais, o espaço público, o impacto
ambiental de nossas ações, os direitos alheios e a corrupção do poder público e
os agentes privados são o combustível que alimenta esse cortejo de desgraças.
Quem pode pagar para tentar ficar imune às tragédias, paira ou pensa pairar sobre
os demais, especialmente aqueles que são relegados às fímbrias dos direitos, a
quem cabe torcer para que “Deus seja brasileiro” e rezar para vir sol e chuva
na medida certa.
A essência desse problema não
está nas “temíveis forças naturais”, mas numa sociedade que convive
“gostosamente” com a exclusão, com os abismos sociais e a extrema concentração
de riqueza. Qualquer política mais ou menos tímida que pretenda alterar “as
coisas como elas são” é duramente atacada e não está realmente no horizonte um
conjunto de políticas que rompa os privilégios e garanta os direitos efetivos
para todos. Por isso há a conhecida diferença entre “escolas para pobres e
ricos”, “saúde para pobres e ricos”, “moradia para pobres e ricos”, entre
outras condições useiras e vezeiras que parecem naturais, porque “choveu mais
que o previsto...”. Nessa verdadeira “cruzada” pela manutenção dos privilégios,
papel não desprezível joga uma mídia quase absolutamente partidária e engajada
nas estruturas de poder, controlada por restritos grupos econômicos e que
desinforma informando, mostrando uma “realidade” que simultaneamente falseia.
Além do mais, o lado instrumental das tragédias (com todo o festival de
roubalheira e irresponsabilidade associado) é, em si, um aspecto diretamente
necessário e indispensável das mesmas.
Como
não encontrar similaridades entre essa e outras tragédias – infelizmente
corriqueiras – cujas maiores vítimas são invariavelmente os mais pobres? Só
para lembrar de passagem, o terrível incêndio da Vila Socó, em Cubatão (SP), no
ano de 1984, quando um vazamento irresponsavelmente não resolvido num duto da
Petrobrás, matou 93 pessoas, de acordo com números oficiais, mas que pode
chegar à cifra de 600 vítimas, num incidente não devidamente investigado em plena
ditadura. A recente tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, não deixa de
atualizar esse quadro do inesperado que é mais ou menos esperado, a depender dos
azares da fortuna, que, segundo Maquiavel, governam metade de nossas vidas, mas
que deixam a outra metade para nosso juízo se prevenir contra o “mais que o
esperado”. Há o dado adicional nessa última de que, quando as tragédias atingem
“gente bonita” (naquela simpática linguagem eugênico-popular) parece que a
coisa até dói mais nos nossos órgãos cordiais.
Aqui mesmo em João Pessoa temos
uma situação afortunada de tal porte na conhecida “partilha” da várzea do
Jaguaribe entre tubarões e piabinhas, feita ao arrepio de qualquer
regulamentação ou fiscalização pública. Mas Deus deve ser pessoense e, até que
aconteça algo “inesperado”, ou seja, até que venham chuvas copiosas “acima do
esperado”, tudo ficará no mesmo diapasão. No mais, em alguma eventual tragédia,
a cidade sairá no noticiário nacional, o que poderá nos deixar muito orgulhosos
pela projeção alcançada!!!
OUTRO LADO B:"cena clássica" da seca, com mortes e destruição material devidas à estiagem prolongada, com chuvas "abaixo do esperado". Imagem que parece se repetir à exaustão.
Como reagir, por exemplo, frente
à desfaçatez quase cínica de boa parte de nossas paraibanas elites, que “choram
os males da seca”, enquanto promovem grandes negócios e negociatas, insensíveis
às mazelas vividas pelos mais pobres? Hoje é Dia de São José, que, segundo a
tradição popular, é o dia-limite para se saber se haverá ou não seca. O FATO (e
uso o termo em maiúscula, para ressaltar sua efetividade) é que há muito tempo
se sabe que há anos em que se chove “menos que o esperado” para o período –
numa dessas irônicas inversões da fortuna entre norte e sul da nossa terra Brasilis – e as tragédias humanas
parecem se repetir e acumular como um disco riscado, já devidamente detectado
há tempos pela nossa célebre literatura da seca, também conhecida desde os
bancos escolares. Essas tragédias também trazem seu lado instrumental e não
poucas fortunas foram construídas à base de expedientes que se repetem ao
tédio, como variações de um mesmo tema. Enquanto isso, as velhas e boas
estruturas de poder e concentração de riquezas permanecem altaneiras sobre as
vítimas do bolo que cresce há muitas gerações, mas que parece não querer ser
dividido jamais. Quando chove “o esperado”, é o tempo certo de agir para evitar
novas mazelas e tragédias, mas não parece que esse tipo de “previdência” (o ver
adiante) esteja no horizonte, tais quais as inundações e secas, que virão “além
do esperado” em algum momento que podemos esperar adiante.