quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A DITADURA EM COISAS MIÚDAS


          As recentes e chocantes “revelações” em torno das atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar que comandou o país, entre meados das décadas de 1960 e 1980, ainda incomodam muito a nossa sociedade, permanecendo como uma espécie de esqueleto no fundo do armário de nossas consciências. O uso das aspas em relação à palavra revelações é absolutamente proposital, uma vez que muito do que está vindo à tona já era bastante conhecido, mas estava recalcado nas memórias de quem gostaria de esquecer para sempre (algozes desejosos de esconder seus delitos e algumas vítimas traumatizadas pela violência sofrida), especialmente entre os que apoiaram a ditadura, ou que foram no mínimo omissos (o que não deixa de ser uma forma de apoio dissimulado), e hoje gostam de posar de bons moços do passado. Alguns desses mesmos possuem a capacidade camaleônica de apoiar qualquer grupo que estiver nas cercanias do poder, como numa inversão de conhecido ditado: “¿Hay gobieno? Soy favorable”... Uma cultura autoritária subjaz no fundo da “alma nacional”, não poucas vezes se voltando contra pobres, indigentes e desfavorecidos de todo o tipo nessa nossa pátria, que ostenta varonil a condição de uma das campeãs mundiais de exclusão social. Não se toca fogo em índios ou mendigos amiúde sem uma sofisticada elaboração cultural como pano de fundo.




Uma das questões menos percebidas nos debates em torno da instalação da Comissão da Verdade, diz respeito ao fato de que nos defrontamos com essa cultura autoritária profundamente enraizada e nos cabe aprofundar o debate sobre o como será possível enfrentá-la em toda a sua extensão. Como será possível explicar que boa parte da nossa sociedade se divirta com programas de gosto no mínimo duvidoso como os reality shows da vida, cuja finalidade essencial é humilhar, expor ao ridículo, ao sofrimento? Como é que pessoas supostamente saudáveis não vomitam – ou até vibram entusiasticamente – ao ver Roberto Justus demitir outras pessoas, como se fossem ratinhos em um satânico laboratório social, ou Pedro Bial comandar rituais de sadismo explícito em horário “nobre” (que bem poderiam ser invadidos por defensores dos animais indignados com os maus tratos à espécie humana)? Como explicar a empatia generalizada com quem manda, quem pode humilhar e espezinhar os outros? Como equacionar devidamente o fenômeno aparentemente inexplicável da falta de civilidade no trânsito e da manifesta prepotência de alguns homicidas potenciais, que possuem carros possantes e se sentem os verdadeiros capitães do mato, soltos nas estradas e estacionamentos país afora?
Ainda falta muito – se é que um dia conseguiremos – para expurgar esse nosso lado herdado do baú escravista que é o lado mais obscuro de nossa cultura. O espírito da Casa Grande ainda reina inconteste em nossa sociedade. É o nosso “ovo da serpente”, chocado dia a dia sob o calor do nosso sol tropical e o nosso céu gentil. Para os interessados, não deixo de sugerir a estimulante leitura de “O Mulo”, de Darcy Ribeiro, um retrato em negativo dos desvãos da memória de nossos mandões, cujos bisnetos, trajados de terno e gravata, munidos da tecnologia mais sofisticada e ocupando os postos mais elevados de nosso mundo empresarial-político, ainda sentem saudades da senzala e do chicote para poderem exercer suas vocações com mais autenticidade.
Para estes, a democracia se resume ao que lhes favorece, a um rito meramente formal, ou como já tinha intuído João Goulart (à parte as seguidas controvérsias em torno do personagem) no famoso Comício da Central em 13 de março de 1964: Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam. Na mesma ocasião, indo além, o então Presidente declarou de alto e bom som a força do auto-engano que move parte de nossa consciência, que sofre crises histéricas de moralismo hipócrita e inquisitorial alimentado à mancheia por nosso oligopólio midiático: Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro. Não seria esse o combustível para alimentar a luta feroz pela manutenção de nossa sociedade de privilégios? Não seriam as manipulações de “ameaça do comunismo”, “baderna do vandalismo” e outras desse jaez uma confortável coberta para esconder o fato de que nossos maiorais desejam firmemente manter suas vidas nababescas acima da maior parte da sociedade?
Em 1964 tudo cabia no anticomunismo (repressão a reivindicações sociais diversas, moralismo exacerbado, um monte de coisas e até mesmo o comunismo, que serviu à medida como um “espantalho” para assombrar as senhoras da “boa sociedade”). Hoje continua cabendo um monte de coisa em rótulos de ocasião, para “explicar” o que não tem como esconder: uma sociedade violentamente cindida entre um topo que goza as delícias da existência e uma vasta base alijada de tudo isso. Esse é o verdadeiro combustível de nossas políticas de “insegurança pública”, para as quais não haverá policiamento que dê jeito. A propósito, não temos todos os elementos para entender toda a extensão do que acontece nos dias que correm e recebem o rótulo de “vandalismo” – mas que podem esconder desde a rebelião contra a violência diária a qual são submetidos jovens empobrecidos até a ação dos famosos “agentes provocadores”, que obram a serviço de “forças terríveis” escondidas no subsolo de nosso mundo social. Independentemente de tudo isso, gostaria de obtemperar que não me parece o melhor caminho destruir patrimônio público como telefones ou lixeiras, é preciso divisar caminhos efetivos para construir um futuro alternativo. A não ser que parte desse componente autoritário de fundo também se acople ao tecido de determinados grupos que apenas pretendem obter as condições necessárias para empunhar o látego sobre os outros.         
Por tudo isso mesmo, é que só conseguimos vislumbrar da ditadura o seu lado mais “espetacular” e “chocante”, as narrativas das horrendas perseguições, exílios, torturas, assassinatos, desaparecimentos e outras práticas de infernal teor. Ainda não foi publicamente avaliada a longa permanência dos esquadrões da morte, “mão branca” e toda a sorte de “clubes de extermínio” que possibilitaram, sob denominações diversas, o “sono sossegado” de nossas altruístas elites. Passa despercebida da maior parte a ditadura solerte, as coisas miúdas do cotidiano que se entranharam profundamente em nosso tecido social e cuja superação exigirá um longo aprendizado – lembrado oportunamente por uma das pessoas mais especiais que me honraram com sua amizade, o sociólogo e Ex-Presidente da UNE Vinícius Caldeira Brant, numa publicação acerca do Congresso de reconstrução da entidade em Salvador (1979): Pra reaprender a somar no movimento estudantil ou em qualquer outro movimento, vai ser necessário responder a uma prática democrática de tolerância que a ditadura fez que as pessoas desaprendessem –, ou seja, que a ditadura tinha exacerbado nosso traço autoritário mais que secular e que o aprendizado de uma prática efetivamente democrática levaria longos anos, talvez gerações. Eu acrescentaria, para o sorriso do amigo: e não é possível construirmos qualquer prática democrática mergulhados num oceano de injustiça social.

O "exílio interno" em O Toque do Silêncio.

          Essa ditadura miúda – ainda longe de seu ocaso – se manifestou na gestação de um ambiente asqueroso de bajulação de poderosos e de delação generalizados; no exercício sutil de um olhar seletivo, que evitava ver certos abusos e injustiças cometidos à luz do sol. Além da ditadura dos porões e grupos de extermínio, essa outra ditadura vicejou longamente, sendo aquela que dava sentido à dos quartéis: a peçonhenta ditadura do grande capital (lembrando da obra sempre marcante de Octávio Ianni), da exploração desenfreada e desavergonhada dos trabalhadores, somada à das pequenas perseguições do cotidiano, dos incalculáveis danos gerados a muitas pessoas que foram prejudicadas em seu ambiente de trabalho, nas suas relações de vizinhança, nos comentários à boca miúda que constrangeram indivíduos que “feriam a moral e os bons costumes”. Essa ditadura miúda foi tratada com brilho e rara sensibilidade e brilho em “O Toque do Silêncio”, de autoria de mais uma pessoa que me honrou com sua amizade, o historiador Francisco César de Araújo. No livro, através do seu alterego, o professor Júlio – um ex-militante do movimento estudantil que se tornara professor em uma cidade (qualquer cidade) do interior brasileiro nos finais dos anos 60 e início dos 70 – Chico Araújo denunciou o clima contínuo de delação, de controle, de perseguição que mostra o “lado civil da ditadura militar”, o lado miúdo que tinha na tortura sua outra e terrível face: ambas se alimentavam mutuamente. Na Escola, no bairro, nas mais comezinhas atividades diárias, esse ambiente “empesteado” se manifestava de sol a sol.
Não podemos deixar esquecer que muita, mas muita gente apoiou ativa ou passivamente a ditadura e exerceu do jeito que pode sua “ditadura particular”. Fosse a vítima a empregada doméstica, o menino de rua, a pessoa “esquisita” da vizinhança, essa ditadura penetrou por todos os poros de nossa sociedade. Não podemos deixar esquecer que maior parte dos meios de comunicação (o oligopólio midiático) que tece loas à democracia nos dias que correm, colaborou alegremente com o que alguém, numa dose deslavada de eufemismo e um acesso de cinismo, denominou de “democracia forte”.
Para não deixar de referir mais miudamente a um fato que nada tem de miúdo – pelo contrário, revela em sua extensão o descalabro do regime – lembro de um fatídico acontecimento no dia 25 de agosto de 1975, em João Pessoa: em meio às comemorações da semana do soldado, um festivo evento com direito a exposição de armamentos e veículos militares no ponto central da cidade, terminou com um trágico resultado: 35 mortos, 29 dos quais crianças. Por incúria ou outro problema que falta apurar, uma embarcação que fazia passeios na Lagoa do Parque Solon de Lucena naufragou e o desespero das pessoas e o despreparo dos promotores do evento consumaram o terrível acidente. Com certeza, não chegaria aqui a conceber qualquer propósito soturno no acidente (seria coisa inimaginável), mas a não apuração judicial das responsabilidades (como hodiernamente exigimos em relação da tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria-RS), garantiu a impunidade para os culpados e a não reparação devida pelo Estado brasileiro. As famílias vítimas do terrível acidente devem receber as reparações do Estado, uma vez que a incapacidade do poder público de garantir a segurança da população e, nesse caso da Lagoa, a clamorosa incompetência, levou ao trágico desenlace. Como o incidente envolvia gente poderosa, sua investigação foi devidamente engavetada, assim como em muitas outras atrocidades cometidas pelo Estado brasileiro em relação à sua população. Lembremos ainda o caso da tragédia da Vila Socó (Cubatão-SP, 1984), quando uma comunidade foi totalmente destruída, com centenas de vítimas carbonizadas, dada a incúria e a prepotência dos diretores da Refinaria Artur Bernardes, que se recusaram a atender os reclamos da população sobre vazamento do gasoduto que atravessava o subsolo da comunidade: uma pequena fagulha e... muitas vítimas...

Tragédia da Lagoa - o Estado brasileiro precisa ser responsabilizado.

Creio que tragédias como a da Lagoa ou da Vila Socó são questões que exigiriam a investigação das Comissões da Verdade, por envolverem a falta de apuração por responsabilidades do Estado frente a tragédias sociais, geralmente anunciadas. Estado esse que sempre foi muito cioso de segurança pública quando essa envolvia e envolve a proteção dos bens e propriedade de nossos patrícios, mas que é insensível ou omisso quando essa segurança exige o cuidado com os mais desprotegidos frente à sanha do grande capital.
                           


Em 20 de novembro de 2013, 318 anos depois da morte de Zumbi dos Palmares pelas tropas a serviço da segurança e da propriedade dos poderosos de plantão.  


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