quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ditadura é isso aí!



 
Informação oficial notificando as autoridades sobre o perigo escondido em "inocentes" Dicionários e Palavras Cruzadas. A subversão internacional atuando solerte onde menos se esperava. 
 

    Está lá no papel amarelado da Informação 230/74 da Assessoria Especial de Segurança e Informações da Universidade Federal da Paraíba, emitida no dia 12 de Dezembro do ano 1974 da Era cristã. Oriunda dos insondáveis “escalões superiores”, se informava aos Diretores dos Centros que circulavam entre professores e alunos publicações de alta periculosidade: os verbetes subversivos do Dicionário de Ouro da Língua Portuguesa, de Éverton Florenzano e uma Palavra Cruzada Coquetel Jumbo, com cruzadinhas apologéticas a políticos cassados.
Não, incrédulo leitor, isso não é uma brincadeira digna das Diatomáceas da Lagoa, é um documento oficial da República Federativa do Brasil, que através de um de seus órgãos, constatou por intermédio de um araponga zeloso de suas funções arapongais, que o referido Dicionário trazia os verbetes capitalismo e comunismo com fortes tendências esquerdizantes. Para corroborar suas ações em defesa da segurança nacional no combate da “democracia e cristandade contra o comunismo ateu”, o operoso e modelar funcionário público dedicou-se a comparar os verbetes capitalismo e comunismo com os constantes no famoso Dicionário Aurélio, constatando que o circunspecto dicionarista tratava tais verbetes com a devida neutralidade, o que provava as intenções subversivas do seu colega.
Para mostrar como se tornava ainda mais alarmante o perigo de tal doutrinação sobre os jovens e impressionáveis cérebros de escolares e universitários, observava o espião patriota que o divertimento de palavras cruzadas instilava de forma hedionda e subliminar o veneno subversivo sobre suas pobres vítimas, fazendo referências positivas a políticos nacionais e estrangeiros comprometidos com a propaganda dos comunas, certamente teleguiados a partir dos porões moscovitas, centro nervoso do comunismo internacional.

Segundo o zeloso araponga, o "inocente" divertimento instalava o veneno comunista nas mentes incautas. Autoridades de segurança da Mickeymouselândia já determinaram a proibição de venda de cruzadinhas em aeroportos e seu uso em aviões, pois pode ter algum plano de extremistas absconso nas entrelinhas e estimular os passageiros a cometerem maluquices aéreas.
  
Certamente, uma ditadura faz grandes coisas, constrói grandes obras, promove grandes negociatas sob o sigilo cerrado das autoridades, realiza grandes atos repressivos com constrangimentos, perseguições, torturas ou eliminações físicas de seus opositores. Mas as ditaduras também são campo fértil para a imbecilidade nossa de cada dia. No cotidiano ditatorial se misturam grandes e pequenos feitos, cruéis e bárbaras ações de violência e pequenas vinditas levadas a cabo por pequenos asseclas do regime.
Essa gente dá o tipo de suporte que parece conferir uma base “popular” ao regime. É composta de pequenas peças da grande engrenagem – tais como o nosso honorável e letrado araponga que espionou o Dicionário e as Palavras Cruzadas – que articulam as coisas grandes e as miúdas, tal como tivemos oportunidade de falar em outra ocasião nessas mesmas Terras.
Uma vez enviada essa assombrosa Informação aos administradores universitários, notificava-se – para o alívio da mãe gentil e gáudio da democracia ocidental –, que os diretores da editora de ambas as publicações haviam se comprometido a corrigir os problemas nas futuras edições, em nome da segurança pátria, não deixando de desqualificar o dicionarista nos seguintes termos: “o autor, um ex-oficial da FEB, não parecia pessoa capaz de emitir suas opiniões num dicionário”!!!.

O Dicionarista-subversivo teria utilizado a publicação para difundir opiniões esquerdistas. Material de doutrinação subliminar comuna circulando entre os estudantes ingênuos, que foram protegidos pelos altos e baixos escalões da segurança nacional. "O preço da liberdade é a eterna vigilância".  

















             Consideradas essas titânicas revelações, solicitavam os escalões médios dos setores de segurança e informações aos Diretores de Centro da colenda Universidade Federal da Paraíba que evitassem a adoção de tais publicações, acrescentando prudentemente que as mesmas autoridades acadêmicas agissem de forma discreta, para evitar atenção da comunidade, especialmente dos alunos. Tudo isso registrado com os devidos carimbos que deveriam garantir o eterno sigilo dessa história singular.
A aparatosa ditadura militar parece ter sido tragada pela noite dos tempos – pelo menos o seu aspecto castrense, incômodo, espalhafatoso e oneroso, parece ter sido tirado do caminho – mas a grande ditadura econômica continua vicejando lépida e fagueira por essas plagas. Essa mesma se solda com a pequena ditadura do cotidiano, expressa nas micro-violências dos que possuem alguma fatia de metal ou poder e conseguem descarregar seu autoritarismo e intolerância sobre os que os cercam e não possuem tais requisitos.
Quanto às Palavras Cruzadas ou Dicionários não há mais necessidade de fiscalizar se são ou não subversivos, afinal, ler e escrever não são bem passatempos prestigiados nos tempos felizes que correm. Hoje, esse araponga das cruzadinhas é passível de riso, mas a coisa não foi bem assim em datas pregressas...

Dedicado a Mirza Pellicciotta, que dividiu comigo a melhor parte dessas reflexões e preservou cuidadosamente esses documentos.                         

terça-feira, 8 de julho de 2014

As chuteiras douradas e a seleção amarela

                                                                                                         Ângelo Emílio da Silva Pessoa


As collonias... são estabelecidas em utilidade da metrópole. Por máxima fundada nesta utilidade os habitantes das Collonias devem ocupar-se em cultivar, e adquirir as producções naturaes, ou matérias primeiras, para que sendo exportadas à Metrópole, esta não só della se sirva, mas aperfeiçoaduas possa também tirar das collonias o preço da mão d’obra e possa commerciar no superfluo com as Nações estrangeiras. AUTOR DESCONHECIDO. Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí. (final do século XVIII).


A título de exemplo, diz-se que o Clube de Regatas Flamengo possui cerca de 25 milhões de torcedores. O time com maior torcida no país, nesse sentido, possuiria em torno metade da população espanhola, inserido numa economia que é maior que a daquela nação ibérica. Como explicar, então, que esse time – tal como diversos outros de porte similar – viva de pires na mão, apesar dos grandes negócios de vendas de jogadores para times espanhóis, italianos, alemães, ingleses, ucranianos, turcos, e por aí vai, em escalas decrescentes de economia e poder futebolísticos?
Como explicar que a mídia esportiva brasileira comemore tão efusivamente quando um craque de um time nacional seja vendido para um time estrangeiro (quando deveria protestar veementemente contra essa situação) e – alegadamente tão ciosa da moralidade – não discuta efetivamente os esquemas de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e outros trambiques, alguns bastante notórios e bem recentes? 
Vamos a alguns fatos:
Por circunstâncias de jogo, o time brasileiro até poderia ter vencido a Alemanha no jogo que se encerrou há pouco. Um gol brasileiro no início, certa instabilidade alemã, novo gol no contra-ataque e placar seguro na base do drama, tal como se deu com a Colômbia. Afinal, a seleção alemã que enfiou 7 gols no time brasileiro, chegou a passar maus bocados com os EUA, a Argélia e Gana, que não são assim potências tão consideráveis. Por outro lado, as individualidades do time brasileiro não são jogadores de baixo nível técnico, a comissão técnica é experiente e tem resultados, mas, o conjunto, simplesmente, não aconteceu, não chegou a existir um coletivo.
Posto isso, o time brasileiro simplesmente se desmanchou como uma maionese que desanda. Na cultura popular, a amarelinha amarelou. Não padeceu de apagão futebolístico, mas de apagão moral (falo da moral coletiva e não do caráter certamente excelente de cada jogador), desmanchou-se e a prova mais dolorosa é que nenhum gol foi resultado de contra-ataques do time tedesco, mas de ataques não combatidos por uma equipe canarinho absolutamente apática, totalmente bisonha. Os 5 a 1 da Holanda sobre a Espanha foram resultantes de tentativas desesperadas dos espanhóis de correr atrás do placar adverso, os 7 a 1 da Alemanha foram obra do colapso de um quase-coletivo que não chegou a se realizar.
Parece que o time esteve a perigo em outros jogos, mas a casa só caiu na undécima hora. Digo time, e não seleção, basicamente porque não existe seleção brasileira: sem culpas dos jovens jogadores, eles não jogam no futebol brasileiro, não frequentam estádios brasileiros, não convivem com a população brasileira. São vendidos como produtos coloniais, tal e qual o procedimento que o anônimo do século XVIII dizia sobre o Brasil de antanho (ou hodierno?). Nos tornamos fornecedores de matérias-primas e usamos camisas de Barcelona, Bayern, Milan e times estrangeiros com orgulho de torcedores sinceros. Pouco a pouco as camisas e as histórias dos times nacionais vão se tornando meras barrigas de aluguel para gerar craques que irão atuar em outros gramados. A conta é fácil: de Flamengo, São Paulo, Palmeiras, Corinthians, Botafogo, Internacional, Vasco e outros times outrora poderosos, não havia NENHUM no time brasileiro. Enfim, onde não existe o futebol de qualidade no dia-a-dia não há como se gerar um selecionado verdadeiro, dá apenas para catar um time às pressas, treinar uns 30, 40 dias e torcer para a coisa engrenar à base de individualidades inspiradas.
Para o craque maior (com parcelas decrescentes do mesmo método para os demais), a receita foi abusar do merchandising, propagandear cuecas, óculos, chuteiras douradas e outros bibelôs, enquanto o futebol ia minguando a olhos vistos. Basta ver que depois das tais chuteiras douradas e umas tantas baixadas de calção para promover a fábrica de cuecas, o futebol foi declinando. Certamente o “garoto” não merecia a séria contusão e pode ainda fazer uma bela carreira, mas deve diminuir a publicidade e amassar um certo barro e comer mais feijão com arroz antes de superar gente como Rivelino, Garrincha, Nilton Santos, Jairzinho, Sócrates, Didi, Zico, Ademir da Guia, Falcão, Djalma Santos, Leônidas da Silva e tantos outros que envergaram a famosa “amarelinha”. Por ironia do destino, nas velhas gestas de cavaleiros andantes, quando algum dos duelantes movido pela vaidade vestia uma armadura ou usava uma espada dourada, acabava inapelavelmente derrotado.
Para a torcida que estava presente às partidas – a maior parte de gente que tinha bastante dinheiro para pagar o espetáculo mas nunca pisou num estádio, não vive o dia-a-dia dos times brasileiros, não participa da “cultura popular” do futebol – a coisa se resumiu a não ter palavras de ordem (ou repetir o surrado "eu sou brasileiro..."), vaiar hinos estrangeiros, xingar a Presidente, esbanjar selfies e outras coisas que não representam exatamente o que se passa nos estádios brasileiros, nos jogos sem badalação e toneladas de dinheiro, que fazem parte da cultura futebolística que foi (e digo FOI porque a coisa está passando e a história que interessa é a do futuro) a verdadeira força do futebol brasileiro.
O slogan que dizia “agora somos um”, representa, como devíamos saber, uma imaginação de nacionalidade, que supostamente expressaria nossa projeção ante o mundo. O futebol é algo no qual supostamente damos certo, somos superiores, e isso é uma espécie de contraparte do tal complexo de vira-latas, tão ciosamente e secularmente pregado pelas elites brasileiras contra o nosso povo, tratado como boçal, preguiçoso, incapaz. De repente, em meados do século XX, no cerne desse povo visto como chinfrim, nasce uma espécie de arte que poderia projetar algo positivo em torno desse imaginário da nação. Não à toa que, a par das manipulações políticas e negociatas econômicas, o futebol se constituiu n as brechas como uma espécie de patrimônio cultural do povo e da nação. Essa cultura futebolística afagou nossos sonhos de grandeza, de justiça, de melhoria. Chega a ser ironicamente doloroso – ou sintomático – comemorar o centenário da seleção com um fiasco de tal magnitude.  

É essa cultura futebolística – verdadeira galinha dos ovos de ouro – que está sendo esganada pela ganância desenfreada dos dirigentes, empresários e jornalistas-empresários do meio, que estão longe de sofrer algum prejuízo mesmo quando os times e as seleções perdem os jogos e os campeonatos. Nossa cultura futebolística já havia perdido o campeonato bem antes da Copa começar.