Assembleia Legislativa - entre o conforto e a responsabilidade. |
O fascínio das novidades convive com questões menos inocentes que mobilizam alguns arautos do novo. Não raras vezes, numa cidade, quando se exalta uma nova área como moderna, sofisticada, esse discurso traz à socapa inconfessáveis interesses de especulação, notadamente imobiliária, com suas decorrentes lavagem de dinheiro, superfaturamentos de obras e toda essa pletora de práticas que a sociedade, muitas vezes, finge condenar.
A propalada mudança da
Assembleia Legislativa da Paraíba para o Altiplano do Cabo Branco segue uma
desastrosa política urbana já iniciada décadas atrás com a mudança do Centro
Administrativo do Estado para Jaguaribe, do Centro Administrativo Municipal
para a Água Fria e a pulverização de ramos do Judiciário para áreas diversas da
cidade, com tendência a se concentrar no Brisamares e Jardim Luna, às margens
já congestionadas da BR-230 (não sendo nenhum exercício de futurologia prever
congestionamentos-monstro na área após a instalação da Justiça do Trabalho e do
Ministério Público nas imediações, para maior desespero dos
“quase-futuros-ex-moradores” da Rua Casimiro de Abreu e adjacentes).
Numa passagem clássica
na qual discutia a formação das cidades brasileiras, o historiador Sérgio
Buarque de Holanda nos comparava a “semeadores”, que fazíamos tudo à base do
improviso, nos opondo aos povos “ladrilhadores”, marcados pelo senso de planejamento.
Outros historiadores se contrapuseram, por vias diversas, a essa forma de
análise e destacaram a questão de indícios de planejamento efetivo na formação
de nossas urbes. Para embaralhar as coisas, fica a questão preliminar:
ladrilhar seria necessariamente melhor que semear? Que tipo de ladrilhagem é
efetivamente feita? A que interesses atende? Haveria uma oposição binária entre
semear e ladrilhar ou ambos seriam processos muitas vezes complementares entre
si? Nossas cidades, com esse tipo de crescimento, não estariam repetindo, em
escalas distintas, ciclos de especulação-valorização-exclusão-violência? Enfim,
vamos discutir algumas questões.
Rua do Melão no começo do século XX. |
No filme Sábado (1995), de Ugo Giorgetti, o diretor abordou de forma mordaz os surrados discursos de “amor pelo Centro” e “vamos voltar às origens” na problemática metrópole de São Paulo, que propugnam iniciativas de “higienização do passado”, a fim de torná-lo uma terra de belezas, sem pobreza e cheia de heroísmos. Efetivamente, tais discursos se pautam por uma espécie de assepsia da História, elidindo os aspectos mais chocantes do passado. Falando em palavras redondas: o passado das cidades brasileiras (e nossa intrépida João Pessoa não é exceção) é marcado pela presença chocante da escravidão, da pobreza, da violência, do abandono, enfim, da nossa tão íntima, perversa e pitoresca convivência entre riqueza e miséria. Assim, sem muito rodeio, quando observamos antigas imagens de nossas cidades, poucas vezes ficam evidentes (ou são deliberadamente disfarçadas) as habitações precárias, as pessoas empobrecidas e assim por diante, como podemos verificar numa valiosa fotografia da Rua do Melão (Beaurepaire Rohan) no início do século XX. Que pena que as fotos não tem cheiros e barulhos!!! As tecnologias emergentes, logo que tornarem isso possível, poderão trazer várias vantagens e, com certeza, alguns incômodos.
Detalhe da Rua do Melão - passado a "terra de belezas". |
Se realizássemos uma
suposta viagem ao nosso “centro histórico” (neologismo para esconder o fato que
o grande capital e a grande política abandonaram o lugar e foram “florescer” em
outras plagas), ou mais precisamente nas imediações das atuais Praça Vidal de
Negreiros, 1817 e João Pessoa, lá pelos finais do século XIX, encontraríamos o
local povoado de ex-escravos, pobres, trabalhadores informais e toda uma
pletora de gente que foi sendo escorraçada do lugar nos processos de
modernização do século XX. Não é à toa que as antigas Igrejas do Rosário dos
Pretos e da Mercês dos Pardos do local foram postas abaixo. Quem residia nesses
lugares quando as mesmas foram erigidas em finais do século XVIII (que pena que
os antigos mapas urbanos não representavam choças miseráveis que existiam na
velha (então nova) cidade!!!)? Certamente não eram os pretensos afidalgados do
lugar, que estavam mais acima, na parte mais alta nas Ruas Direita e Nova. Num
processo que já vinha do final do Oitocentos, por volta dos anos 1920/1940, o
lugar foi sendo seguidamente valorizado e “embelezado” para os bem-nascidos
locais, sendo a populaça enxotada das redondezas. Esses processos não acontecem
sem que estejam diretamente associados os ganhos dos ladrilhadores com as
táticas ou astúcias de sobrevivência dos semeadores que laboram para se alojar
nas fímbrias do tecido urbano valorizado e, assim, poderem defender seus
modestos meios de vida.
Eis que a cidade
“descobre a praia” nos meados do século XX. Mesmerizados pela visão da cidade
moderna, o paraíso tropical onde o sol nasce primeiro e apresenta uma pretensa
qualidade de vida para os bem-afortunados, se transferem negócios, moradias e
órgãos da administração pública para o lugar. As antigas povoações de
pescadores (que ali estavam, como atesta um interessante depoimento do pastor
Daniel Kidder que esteve em “Tambaiú” por volta de 1839 e conversou com pessoas
do lugar) foram devidamente “realocadas” em outras plagas e seus moradores foram
semear suas vidas onde pudessem habitar e ter algum trabalho. Em bairros
abertos – ladrilhados – pela combinação entre os planos urbanos e as novas
condições de transporte de massa, foi sendo destinada a moradia e serviços das
populações de menor renda. Para os que habitavam os universos da pobreza
“pura”, restaram os lugares menos prezados pelos negócios urbanos. Vejam-se os
casos dos terrenos nos “fundos” de Manaíra, Tambaú, Bessa e Intermares, que vão
se tornado progressivamente áreas consideradas “problemáticas” pelas
autoridades da Capital e da Capitania. Não é futurologia também perceber o
acúmulo de problemas de mobilidade urbana na nova fronteira do glorioso e solar
porvir, o Altiplano do Cabo Branco, à medida do adensamento de Condomínios
fechados, negócios e órgãos da administração nos grandiosos empreendimentos
ladrilhados pelos bem-afortunados locais (associados ao Capital de outras
plagas, nem sempre legal, e devidamente lavado para acobertar sua delituosa
procedência); por sua vez, esses estarão associados aos processos de semeio de
precárias moradias nos fundos dos pequenos vales (Timbó, Aratu e outros) que
medeiam entre a “área nobre” e os bairros residenciais e comerciais ao seu
oeste. Nessas áreas delicadas, a degradação ambiental estará associada à sua
irmã siamesa, a social, ambas são ladrilhadas e semeadas no interior da mesma
lógica.
Para trás, vão ficando
os “centros históricos” que guardam as “belezas do passado”. Será o busto de
Tamandaré uma relíquia de nosso futuro, quando a cidade elegante tiver fugido
para o Altiplano?
O antigo lugar cívico da Capitania – onde, em tempos prístinos, provavelmente habitaram os potiguara, sucedidos pelos jesuítas e pelos moradores desse arrabalde, pelos Governantes e seus funcionários, pelos estudantes do Lyceu e da Escola Normal, pelos freqüentadores do Jardim Público (devidamente gradeado para espantar os indesejáveis), pelos Desembargadores e operadores do Judiciário, pelos Parlamentares Estaduais, pelo comércio mais refinado – foi sendo relegado paulatinamente ao papel de “relíquia” que é bom saber que está lá, que existe, mas que não convém freqüentar pelos habitantes da cidade cosmopolita. Resta aos que não usufruem dessa urbe moderna, se estabelecerem nesses lugares de formas possíveis como lavadores de carro, engraxates e outras pequenas ocupações urbanas. Como se espantar, senão para legitimar a religião nacional da hipocrisia, que algumas dessas pessoas adiram ao “submundo” dos crimes e das drogas, que tiram o sono de nossas autoridades de segurança pública e as pessoas de bem do lugar? Uma cidade que não fornece os confortos e direitos para todos, é geradora da insegurança pública estrutural. Isso não é paternalismo, é apenas a constatação de que esses processos só existem devidamente associados e que os ganhos de uns correspondem diretamente às perdas de outros.
O antigo lugar cívico da Capitania – onde, em tempos prístinos, provavelmente habitaram os potiguara, sucedidos pelos jesuítas e pelos moradores desse arrabalde, pelos Governantes e seus funcionários, pelos estudantes do Lyceu e da Escola Normal, pelos freqüentadores do Jardim Público (devidamente gradeado para espantar os indesejáveis), pelos Desembargadores e operadores do Judiciário, pelos Parlamentares Estaduais, pelo comércio mais refinado – foi sendo relegado paulatinamente ao papel de “relíquia” que é bom saber que está lá, que existe, mas que não convém freqüentar pelos habitantes da cidade cosmopolita. Resta aos que não usufruem dessa urbe moderna, se estabelecerem nesses lugares de formas possíveis como lavadores de carro, engraxates e outras pequenas ocupações urbanas. Como se espantar, senão para legitimar a religião nacional da hipocrisia, que algumas dessas pessoas adiram ao “submundo” dos crimes e das drogas, que tiram o sono de nossas autoridades de segurança pública e as pessoas de bem do lugar? Uma cidade que não fornece os confortos e direitos para todos, é geradora da insegurança pública estrutural. Isso não é paternalismo, é apenas a constatação de que esses processos só existem devidamente associados e que os ganhos de uns correspondem diretamente às perdas de outros.
História é coisa do
presente e é o presente que nos interessa. Para além das dificuldades de
exercício efetivo dos órgãos públicos como a Assembleia Legislativa da Paraíba
no lugar (estacionamento, instalações etc), não seria melhor pensar numa
solução “local” e inclusiva, social e economicamente, para os problemas? Por
que não atacar os processos de concentração imobiliária e de estoque de
edificações e terrenos, que, além de encarecerem o preço de compra (apanágio da
violenta especulação que assola nossas cidades), transformam na mesma medida certos
lugares em “fantasmas”? Não seria melhor discutir com responsabilidade social a
efetiva ocupação da área e considerar os enormes prejuízos sociais e econômicos
decorrentes da transferência da Assembleia para outra região? Não existem
diversos imóveis desocupados ou sub-utilizados para os quais se poderia pensar
a destinação pública e social? O lastimável arquivo da Assembleia (para não
deixarmos de denunciar esse importante Patrimônio Público tratado com tanta
incúria) não poderia ser alocado com conforto e todas as exigências técnicas em
prédios abandonados das imediações, desde que devidamente feita a sua adequação?
Não se pode levar efetivamente a sério os programas de habitação social no
lugar? Não se pode valorizar as pequenas atividades de comércio e serviços que
permitam a vida dos habitantes mais modestos da cidade? Não seria melhor levar
em consideração as necessidades sociais, que não precisam estar em necessária
contraposição ao conforto dos Parlamentares e funcionários do nosso
Legislativo? Não seria importante pensar nessas coisas? Ou a ingenuidade e sua
gêmea siamesa menos inocente – a cupidez – têm de guiar todo o processo? Temos
de ladrilhar e semear perversamente os processos urbanos do futuro?
Não é de desprezar o
fato de que a cidade do futuro possa fazer “campanhas de valorização do Centro
‘Histórico’”, com slogans de “amor ao Centro”, concursos de redação nas Escolas
para aplacar as consciências, criação de “centros de cultura” e “shoppings
populares”. Mesmo os paraibanos de outras cidades não podem se furtar ao fato
de que, no futuro, podem ser acrescidas despesas com segurança pública para os
futuros contribuintes, a fim de “resolver” a insegurança do lugar. Lá virão
denúncias de crimes e violências de toda a espécie, de depredação do Patrimônio
Histórico, de abandono etc. O suposto “abandono” é produzido hoje, essa
hipoteca será pesadamente resgatada no futuro. E se as coisas forem levadas do
mesmo jeito, nossos futuros alcaides iluminados da Filipéia da Beira-Mar irão
promover novas propostas de “revitalização” do lugar, que, invariavelmente,
incluirão a exclusão dos pobres em seu cardápio. Por que, até não mudar a
Capital e pensar num lugar novo digno das pessoas que virão, abandonando as
ruínas do passado para trás?
Hotel Globo - meados do século XX. |
Na contramão disso tudo, a comunidade do Porto do Capim tem aparecido como a principal novidade na política urbana da cidade, verdadeiro esteio de uma cidadania para além do discurso estéril e pouco convincente das autoridades, dos bem-nascidos e da mídia. Eles estão lutando para participar da ladrilhamento previsto para o lugar que há tempos semeiam com suas vidas e labutas, dizendo que a comunidade está lá e é a maior interessada e responsável pela sua preservação e desenvolvimento. No passado asséptico produzido às margens do poder, querem dizer que ali era o lugar nobre das caravelas onde os heróis fundadores empreenderam a civilização do lugar. Cabem alguns reparos: primeiramente, esses heróis fundadores foram os mesmos que promoveram a escravidão, que iniciaram a concentração de rendas e terras, que deixaram as fortunas para seus descendentes e a pobreza e outras mazelas para os seus pósteros não incluídos nas felizes genealogias nobilitantes. Portanto, não consta que devamos ser tão sentimentais em relação a essas pessoas de tempos idos, elas já usufruíram seu gostoso quinhão em vida. Outrossim, se ali havia um porto, não é preciso ser nenhum gênio da historiografia ocidental para saber que a área foi historicamente ocupada por populações trabalhadoras, que estão lá “desde sempre”, considerando que esse sempre começou depois que os potiguara foram devidamente “afastados” manu militari do lugar. Se alguém tem direitos legítimos a usufruir primeiramente da área, é quem já está lá agora, no presente, e que deseja ter voz ativa no que lhe diz respeito. Ou, se vamos “resgatar o passado”, devolvamos a área aos potiguara e ainda paguemos pelo seu uso secular.
Há vezes nas quais os
ladrilhadores semeiam problemas e os semeadores ladrilham soluções. Nossos
parlamentares, que pretendem representar a voz do povo, teriam muito a ganhar
se deixassem de se embalar pelo “som do mar e a luz do céu profundo” e
aprendessem com os ribeirinhos que habitam as margens do Sanhauá, verdadeiro
patrimônio do povo da Paraíba.
6 comentários:
Parabéns! Mais um texto absolutamente importante. De historiador com a necessária sensibilidade e senso crítico para interrogar o seu próprio tempo. Aliás, tempo de toda e qualquer história. Leitura imprescindível para os cidadãos da nossa aldeia e, portanto, do mundo.
Parabéns! Mais um texto absolutamente importante. De historiador com a necessária sensibilidade e senso crítico para interrogar o seu próprio tempo. Aliás, tempo de toda e qualquer história. Leitura imprescindível para os cidadãos da nossa aldeia e, portanto, do mundo.
Pesar qualidades não é fácil, e este texto é uma demonstração da possibilidade de se fazê-la. Cada vez te admiro mais, caro Angelo, e este texto habilmente avança como devem ser amarradas as questões da cidade, da história, do capital e dos nossos (perigosos)sonhos de consumo. Já não temos mais como enfrentar os desafios das Urbes como problemas parcelares. Não há mais tempo para adiá-los. É neste ponto essencial que distingue-se o que o profissional das Humanas deve fazer.
Pesar qualidades não é fácil, e este texto é uma demonstração da possibilidade de se fazê-la. Cada vez te admiro mais, caro Angelo, e este texto habilmente avança como devem ser amarradas as questões da cidade, da história, do capital e dos nossos (perigosos)sonhos de consumo. Já não temos mais como enfrentar os desafios das Urbes como problemas parcelares. Não há mais tempo para adiá-los. É neste ponto essencial que distingue-se o que o profissional das Humanas deve fazer.
Caros Regina e Acácio. Fico lisonjeado com seus comentários e agradeço pela generosidade. Creio que uma questão me incomoda acima de tudo: para que serve a história? A terrível questão que martelou Marc Bloch continua a reverberar com renovada atualidade. Não tenho nada contra colóquios acadêmicos (pelo contrário, até gosto muito deles e desejaria participar de mais), mas acho que a vida de um historiador, e de todo trabalhador intelectual, deve ir além disso. Acho o maior cinismo ficar fazendo discursos progressistas e inflamados (politicamente corretos) e coisas do gênero na hora das tertúlias e depois se fechar entre os pares, sem qualquer compromisso com a humanidade que nos cerca. Penso que temos de atuar, sem paternalismo, sem dirigismo intelectual, mas colaborando com os instrumentos que temos à mão nas lutas pela mudança de rumos que as coisas estão tomando. Rumos bastante preocupantes, na aldeia e no globo. Aliás, a aldeia é a parte do globo que nos cabe, o globo é aqui. Abraços.
Parabéns, Ângelo!
Mais um texto lúcido e de leitura obrigatória escrito por você.
Gostei muito!
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