terça-feira, 8 de julho de 2014

As chuteiras douradas e a seleção amarela

                                                                                                         Ângelo Emílio da Silva Pessoa


As collonias... são estabelecidas em utilidade da metrópole. Por máxima fundada nesta utilidade os habitantes das Collonias devem ocupar-se em cultivar, e adquirir as producções naturaes, ou matérias primeiras, para que sendo exportadas à Metrópole, esta não só della se sirva, mas aperfeiçoaduas possa também tirar das collonias o preço da mão d’obra e possa commerciar no superfluo com as Nações estrangeiras. AUTOR DESCONHECIDO. Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí. (final do século XVIII).


A título de exemplo, diz-se que o Clube de Regatas Flamengo possui cerca de 25 milhões de torcedores. O time com maior torcida no país, nesse sentido, possuiria em torno metade da população espanhola, inserido numa economia que é maior que a daquela nação ibérica. Como explicar, então, que esse time – tal como diversos outros de porte similar – viva de pires na mão, apesar dos grandes negócios de vendas de jogadores para times espanhóis, italianos, alemães, ingleses, ucranianos, turcos, e por aí vai, em escalas decrescentes de economia e poder futebolísticos?
Como explicar que a mídia esportiva brasileira comemore tão efusivamente quando um craque de um time nacional seja vendido para um time estrangeiro (quando deveria protestar veementemente contra essa situação) e – alegadamente tão ciosa da moralidade – não discuta efetivamente os esquemas de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e outros trambiques, alguns bastante notórios e bem recentes? 
Vamos a alguns fatos:
Por circunstâncias de jogo, o time brasileiro até poderia ter vencido a Alemanha no jogo que se encerrou há pouco. Um gol brasileiro no início, certa instabilidade alemã, novo gol no contra-ataque e placar seguro na base do drama, tal como se deu com a Colômbia. Afinal, a seleção alemã que enfiou 7 gols no time brasileiro, chegou a passar maus bocados com os EUA, a Argélia e Gana, que não são assim potências tão consideráveis. Por outro lado, as individualidades do time brasileiro não são jogadores de baixo nível técnico, a comissão técnica é experiente e tem resultados, mas, o conjunto, simplesmente, não aconteceu, não chegou a existir um coletivo.
Posto isso, o time brasileiro simplesmente se desmanchou como uma maionese que desanda. Na cultura popular, a amarelinha amarelou. Não padeceu de apagão futebolístico, mas de apagão moral (falo da moral coletiva e não do caráter certamente excelente de cada jogador), desmanchou-se e a prova mais dolorosa é que nenhum gol foi resultado de contra-ataques do time tedesco, mas de ataques não combatidos por uma equipe canarinho absolutamente apática, totalmente bisonha. Os 5 a 1 da Holanda sobre a Espanha foram resultantes de tentativas desesperadas dos espanhóis de correr atrás do placar adverso, os 7 a 1 da Alemanha foram obra do colapso de um quase-coletivo que não chegou a se realizar.
Parece que o time esteve a perigo em outros jogos, mas a casa só caiu na undécima hora. Digo time, e não seleção, basicamente porque não existe seleção brasileira: sem culpas dos jovens jogadores, eles não jogam no futebol brasileiro, não frequentam estádios brasileiros, não convivem com a população brasileira. São vendidos como produtos coloniais, tal e qual o procedimento que o anônimo do século XVIII dizia sobre o Brasil de antanho (ou hodierno?). Nos tornamos fornecedores de matérias-primas e usamos camisas de Barcelona, Bayern, Milan e times estrangeiros com orgulho de torcedores sinceros. Pouco a pouco as camisas e as histórias dos times nacionais vão se tornando meras barrigas de aluguel para gerar craques que irão atuar em outros gramados. A conta é fácil: de Flamengo, São Paulo, Palmeiras, Corinthians, Botafogo, Internacional, Vasco e outros times outrora poderosos, não havia NENHUM no time brasileiro. Enfim, onde não existe o futebol de qualidade no dia-a-dia não há como se gerar um selecionado verdadeiro, dá apenas para catar um time às pressas, treinar uns 30, 40 dias e torcer para a coisa engrenar à base de individualidades inspiradas.
Para o craque maior (com parcelas decrescentes do mesmo método para os demais), a receita foi abusar do merchandising, propagandear cuecas, óculos, chuteiras douradas e outros bibelôs, enquanto o futebol ia minguando a olhos vistos. Basta ver que depois das tais chuteiras douradas e umas tantas baixadas de calção para promover a fábrica de cuecas, o futebol foi declinando. Certamente o “garoto” não merecia a séria contusão e pode ainda fazer uma bela carreira, mas deve diminuir a publicidade e amassar um certo barro e comer mais feijão com arroz antes de superar gente como Rivelino, Garrincha, Nilton Santos, Jairzinho, Sócrates, Didi, Zico, Ademir da Guia, Falcão, Djalma Santos, Leônidas da Silva e tantos outros que envergaram a famosa “amarelinha”. Por ironia do destino, nas velhas gestas de cavaleiros andantes, quando algum dos duelantes movido pela vaidade vestia uma armadura ou usava uma espada dourada, acabava inapelavelmente derrotado.
Para a torcida que estava presente às partidas – a maior parte de gente que tinha bastante dinheiro para pagar o espetáculo mas nunca pisou num estádio, não vive o dia-a-dia dos times brasileiros, não participa da “cultura popular” do futebol – a coisa se resumiu a não ter palavras de ordem (ou repetir o surrado "eu sou brasileiro..."), vaiar hinos estrangeiros, xingar a Presidente, esbanjar selfies e outras coisas que não representam exatamente o que se passa nos estádios brasileiros, nos jogos sem badalação e toneladas de dinheiro, que fazem parte da cultura futebolística que foi (e digo FOI porque a coisa está passando e a história que interessa é a do futuro) a verdadeira força do futebol brasileiro.
O slogan que dizia “agora somos um”, representa, como devíamos saber, uma imaginação de nacionalidade, que supostamente expressaria nossa projeção ante o mundo. O futebol é algo no qual supostamente damos certo, somos superiores, e isso é uma espécie de contraparte do tal complexo de vira-latas, tão ciosamente e secularmente pregado pelas elites brasileiras contra o nosso povo, tratado como boçal, preguiçoso, incapaz. De repente, em meados do século XX, no cerne desse povo visto como chinfrim, nasce uma espécie de arte que poderia projetar algo positivo em torno desse imaginário da nação. Não à toa que, a par das manipulações políticas e negociatas econômicas, o futebol se constituiu n as brechas como uma espécie de patrimônio cultural do povo e da nação. Essa cultura futebolística afagou nossos sonhos de grandeza, de justiça, de melhoria. Chega a ser ironicamente doloroso – ou sintomático – comemorar o centenário da seleção com um fiasco de tal magnitude.  

É essa cultura futebolística – verdadeira galinha dos ovos de ouro – que está sendo esganada pela ganância desenfreada dos dirigentes, empresários e jornalistas-empresários do meio, que estão longe de sofrer algum prejuízo mesmo quando os times e as seleções perdem os jogos e os campeonatos. Nossa cultura futebolística já havia perdido o campeonato bem antes da Copa começar.  

7 comentários:

Jonas Duarte disse...

Muito bom Angelo. Creio que foste na essencia, porém percebo que esse é um fenômeno latino-americano. A Argentina tomou de 4 em 2010, de forma muito parecida.
Jonas.

Lucas Nóbrega. disse...

Historiadores podem não ser bons comentaristas esportivos, discutindo táticas ou melhores opções para convocações de uma seleção, mas podemos trazer interessantes reflexões sobre o futebol. E sem dúvidas este texto é muito válido para apimentar a discussão sobre o assunto.

Esta copa do mundo foi um grande jantar para um ogro faminto por carne. Um oceano de informações para serem discutidas. Desde os aspectos esotéricos e tenebrosos como vermos Mick Jagger de chapéu branco assistindo ao jogo (http://s2.glbimg.com/PG2pQ2WG5QKc_aFt8y0mQPax4Rc=/620x0/s.glbimg.com/jo/eg/f/original/2014/07/08/451867318.jpg), podemos ver uma figura interessante ao seu lado: Kia Joorabchian. Sim este mesmo, o empresário de 42 anos, que trouxe no ano de 2005 uma seleção de jogadores para o Corinthians com uma facilidade extrema. Empresário que também foi preso em 2007 suspeito de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, mas que em 2008 já estava solto e livre de tais acusações... O tempo passou e diferentemente do que aconteceu aos jogadores que o empresário trouxe ao Corinthians,(o goleiro Bruno, por exemplo, destruiu sua carreira após ser acusado de ter sequestrado e assassinado Eliza Samudio)hoje ele é um agente que defende o interesse muitos jogadores importantes do cenário mundial.

Segue a notícia do globo esporte: http://globoesporte.globo.com/blogs/especial-blog/bastidores-fc/post/kia-joorabchian-sera-o-agente-com-mais-jogadores-da-selecao-brasileira-na-copa.html

Atacantes como Bernard, Jô ou o volante Paulinho, convocações incontestáveis por muitos comentaristas, pertencem aos interesses de Kia.

O fato é que ele é apenas um pequeno ponto de muitos outros pontos, extremamente complicados que estão em volta ao universo do futebol...

A vitória do Brasil não apenas traria alegria as lágrimas do goleiro Júlio César, mas muito dinheiro aos bolsos de muitas pessoas que nunca entraram em campo.

Mirza Pellicciotta disse...

Análise apaixonada e impecável..

Carla Schayane disse...

Ótimo texto, professor. Sua análise diz exatamente o que muitos pensam sobre a situação do futebol brasileiro. Pra mim, que não tive o prazer de viver a época do nosso verdadeiro futebol, fica o sentimento de tristeza pelo jogo de ontem e também pela situação atual da nossa cultura futebolística.

Unknown disse...

O que me deixou triste foi a reação dos brasileiros, querendo arranjar um culpado para a situação sem analisar o cenário no qual tudo isso aconteceu!

Ângelo Emílio da Silva Pessoa disse...

Oi Mozart, bom dia.
Já que você não consegue postar o comentário no Blog, eu o postei, com os comentários abaixo:

Date: Wed, 9 Jul 2014 13:43:17 -0300
Mozart Vergetti

Subject: Re: Terras de História... Respondi aqui... não sei mexer lá

"Para além das negociatas e arranjos de descaminhos fiscais e outras coisas que só a história explica, creio que o cenário de ontem tem apenas um enredo: Felipão e comissão técnica não assistiram, ou não deram bola, literalmente, para o primeiro jogo de Portugal. Portugal ali ensinou como não se deve enfrentar a Alemanha, pois se levou de quatro podia chegar a dez. Todos os outros adversários não deram a moleza que Portugal deu, não subiram nas tamancas e respeitaram a superioridade do adversário. Jogaram como fazem todos jogadores neófitos de xadrez quando enfrentam um cão chupando manga, ou seja, imita o adversário, bate de frente, movimenta as peças exatamente da mesma forma, trunca, amarra, marca e só sai na boa; povoa o meio do tabuleiro, protege a rainha e irrita o adversário. Partir para cima da Alemanha, dizer como disse Parreira, antes do jogo, que o esquema e a estrutura seriam as mesmas, que o jogo não carecia de algo novo, foi a gota d'água. As pessoas que estavam aqui na minha casa lembram perfeitamente o que eu disse: "nós vamos para o jogo com três atacantes? Os caras enlouqueceram, é suicídio..." E digo agora, não há salvação "praquilo", pois todos os pecados capitais foram cumpridos à risca!"


Ângelo Emílio da Silva Pessoa disse...

Olá Mozart.

Você tem razão, o time foi montado errado e Felipão (fã de Pinochet) sofreu um "apagão" entre os 20 e os 35 minutos. Ficou totalmente abatido e não fez o que deveria, mexer no time (substituindo jogador, mexendo no posicionamento, promovendo retranca etc). Para um técnico com a experiência dele (e Parreira) foi absolutamente imperdoável. Eles não são bons técnicos, mas são caras que estão no futebol antes de eu nascer e não poderiam agir feito pintinhos assustados quando a raposa invadiu o galinheiro.
Entretanto, me parece que o problema desse jogo é apenas a cereja venenosa do bolo envenenado do futebol brasileiro.
Nas décadas de 70/90 os jogadores consagrados nos grandes times brasileiros começaram a migrar para os grandes times europeus, especialmente italianos e espanhóis, da metade para o fim de suas carreiras (Pelé [Cosmos - caça níquel], Rivelino [Arábia], Zico [Udinese, mediano], Falcão [Roma], Sócrates [Fiorentina], Júnior [Torino], Careca [Napoli]...). Essa média de idade começou a diminuir e a abrangência geográfica para a Bundesliga, Inglaterra, Holanda e França (à época, de menor expressão que Itália e Espanha). Por volta da tristonha Copa de 90 (com o risível Lazzaroni), a seleção começou a ser "abastecida" meio a meio por times estrangeiros (na de 94 ainda tinha uns carinhas de Palmeiras, Corinthians, São Paulo etc). Foi por aí que o termo "selecinha" apareceu.
O processo continuou a se aprofundar e o Brasileirinho começou a se tornar um campeonato fraco. Os estaduais são de dar pena. Hoje, um dirigente do Palmeiras, São Paulo (nem vou falar do Vasco da Gama, coitado) comemoram entusiasticamente quando vendem o Creidimilson, uma grande promessa de 19 anos, para potências como Ucrânia, Catar (logo será Paquistão, Romênia e por aí vai).
O caso do Diego Costa (que deve estar rindo de orelha a orelha) é sintomático. Para mim, aquele foi o fato determinante do que vem por aí. Jogadores nascidos no Brasil começarão a ir cada vez mais cedo para países estrangeiros e optarão por defender outros selecionados. Se antes a coisa girava em torno de Deco ou Alcindo (jogadores medianos), depois dos 7 a 1 a coisa vai atingir gente mais graúda, porque o prestígio da amarelinha amarelou.
Esse jogo contra a Alemanha poderia ter sido diferente - time montado corretamente, atitude mais decidida do técnico e dos jogadores, alguma sorte no início da partida; afinal, no futebol às vezes o time mais fraco vence uma partida devido a circunstâncias extraordinárias - mas o problema vem de longe e continua.
Nossos times e federações são apenas valhacoutos de negocistas de jogadores, lavadores de dinheiro, ladravazes de pirulitos etc. E não precisaria ser necessariamente assim, porque os torcedores de Flamengo, Corinthians, São Paulo, Atlético Mineiro, Internacional, Bahia e outros se contam aos milhões e isso poderia ser um diferencial, mas exigiria mudanças (não digo de honestidade, porque Chelsea, Parma, Barcelona não são paraísos de empresários éticos, mas os trambiques se dão de outra forma). Os clubes brasileiros são "canibalizados" pelos seus dirigentes. Não sei se isso tem conserto, mas penso que boicotes generalizados ao Brasileirinho e Estaduaizinhos (com interrupção de compra de camisas oficiais, pacotes de TV a cabo etc) poderiam deter parte do fluxo de dinheiro e sufocar os caras para modificarem um pouco as coisas. Intervenções sobre as federações e CBF poderiam limpar a parte mais podre o negócio, mas creio que é muito difícil.
Nossas seleções serão cada vez mais seleções de jogadores nascidos no Brasil e cada vez menos "brasileiras". Às vezes, por circunstâncias, pode dar certo, na mão de um técnico melhor, com um pouco de sorte e dá pra se ganhar uma Copa, mas o futebol brasileiro se tornará cada vez mais bisonho (palavra que papai gostava de usar). Tenho saudades de um belo Fla X Flu, Choque-Rei e outros clássicos, que hoje são piadas de mal gosto.